Encerrando o mês de luta das mulheres, o nosso CRESS Entrevista, nesta edição, a assistente social Floriza Soares sobre questão de gênero e violência contra a mulher.
Floriza é mestra em Serviço Social pela UFRN e sua pesquisa analisou a violência contra a mulher em situação de rua. Além disso, já atou em pesquisa social e nas áreas da Assistência Social e planejamento urbanístico e ambiental.
“Precisamos fortalecer a categoria, afinal somos uma profissão composta majoritariamente por mulheres”, diz. “Nada mais atual que o nosso Código de Ética Profissional. Compromissá-lo com nossa dinâmica da realidade é uma necessidade urgente”.
Confira a entrevista
CR: De que forma você abordou a questão de gênero e a violência contra a mulher na sua pesquisa?
FS: Minha pesquisa tinha por objetivo analisar a violência contra as mulheres em situação de rua no Brasil contemporâneo. Então a questão de gênero foi abordada a partir da categoria “relações patriarcais de gênero”, com base em Heleith Saffioti, por compreender o gênero enquanto conceito socialmente construído, não dissociado do “patriarcado”, este como estrutura de poder que estabelece relações hierárquicas entre os sexos na sociedade.
No caso da pesquisa, cuja análise perpassava a sociedade capitalista no período de mundialização do capital, foi perceptível que a violência contra a mulher em situação de rua tem suas raízes no processo de acumulação primitiva, no movimento de expropriação da força de trabalho, logo, do corpo feminino. Aproximar-se da violência sofrida por mulheres que se encontram nos espaços informais do trabalho, de forma mais profunda aquelas que estão fora do sistema de produção e compõem a “massa sobrante” do capitalismo, o exército industrial de reservas, foi fundamental para apreender os rebatimentos da divisão sexual do trabalho na esfera da vida social dessas mulheres. De modo geral, foi notório a violência como própria do sistema capitalista e da condição de mulher, a qual se agrava na situação de rua. Para este raciocínio, também foram fundamentais autoras como Helena Hirata, Mirla Cisne, Angela Davis e Silvia Federici.
CR: Como você analisa o atual contexto de pandemia e crise social e econômica em seus rebatimentos para a vida das mulheres?
FS: A história nos mostra que em períodos de crise, seja ela social, política ou econômica (acredito que estamos vivenciando todas estas, que se expressam de forma mais latente pela crise sanitária), somos nós, as mulheres, o primeiro segmento social a vivenciar as consequências. No caso da pandemia, na questão das mudanças no mundo do trabalho, que passamos a vivenciar de forma mais concreta com o trabalho remoto, posto o isolamento social, somos nós, mulheres, que vivenciamos de forma mais latente estas transformações, a exemplo do crescimento de mulheres em situação de desemprego, já que ainda hoje os homens continuam ganhando mais em termos salariais, o que levou muitas mulheres a deixar o emprego para ficar com os filhos.
Essa é uma questão mais complexa, que nos exige falar também desse excessivo trabalho não remunerado e, não por coincidência, do crescimento do número de mulheres com adoecimentos psicológicos. Além disso, diria que o mais preocupante é o aumento da violência contra as mulheres, o que nos mostra que o espaço da casa, da vida privada, ainda é um espaço inseguro para as mulheres, pois a violência sofrida, em sua maioria, é realizada por parceiros, cônjuges ou parentes.
CR: Quais as possibilidades e desafios que você enxerga para a atuação das/os assistentes sociais no atendimento à mulher em situação de violência?
FS: Pensando a realidade que vivenciamos hoje, os desafios são muitos, mas poderia dizer que o crescimento do conservadorismo, que fortalece a lógica machista, misógina e sexista na sociedade, é um dos desafios mais preocupantes, pois atravessa os espaços institucionais, a exemplo das mudanças e enxugamentos dos ministérios e secretarias. De modo geral, há seus rebatimentos na vida em sociedade. Neste sentido, temos os cortes orçamentários nas políticas públicas, sobretudo nas políticas de direitos humanos. Na Assistência Social, tivemos um corte de quase 50% para o SUAS, o que fragiliza e precariza ainda mais os serviços socioassistenciais da Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, esta última onde se inserem os serviços de proteção para mulheres em situação de violência, como os abrigos institucionais.
Outro desafio mais recente que tem nos preocupado diz respeito ao corte em benefícios, como o auxílio emergencial, que, entre outras normativas, tem por fim o auxílio às famílias em que as mulheres são as responsáveis pelo sustento familiar, no contexto da Pandemia COVID-19. Vemos que os desafios são muitos, uma vez que consideramos a violação de direitos também uma forma de violência, que corrobora com situações da violência propriamente dita. Neste sentido, não vejo alternativas senão o fortalecimento sobretudo da luta por políticas públicas, daquelas que estruturam a rede de enfrentamento e de atendimento às mulheres em situação de violência, do fortalecimento das organizações da sociedade civil, principalmente aquelas voltadas aos direitos das mulheres, dos movimentos feministas. No que diz respeito ao Serviço Social, é preciso fortalecer a categoria, afinal somos uma profissão composta majoritariamente por mulheres. Por fim, percebemos que tempos difíceis como este nos exigem respostas complexas, já que as demandas assim também são. Neste sentindo, nada mais atual que o nosso Código de Ética Profissional. Compromissá-lo com nossa dinâmica da realidade é uma necessidade urgente.
CR: Por que ainda é tão desafiador para os movimentos de mulheres o combate ao machismo e à violência em pleno Século XXI?
FS: Essa é uma boa pergunta! Ainda que tenhamos conquistas históricas, o combate ao machismo e à violência reproduzida por ele ainda é um grande desafio para os movimentos de mulheres. Estamos falando de séculos de dominação e exploração, por isso não dá para falar de machismo e violência em pleno século XXI sem falarmos de uma organização social que explora, maltrata, subordina essencialmente as mulheres. Digo essencialmente porque o capitalismo é, em sua essência, patriarcal, classista, machista, racista, heteronormativo, ou seja, violento. Vivemos tempos em que o lucro impera aos valores, ao compromisso com o social, com a coletividade, com a natureza. A barbárie é generalizada. Do ponto de vista ideológico, há uma legitimidade desses desvalores, que se materializam no retrocesso dos direitos sociais.
Para nós, mulheres, o desafio é gigantesco, pois não dá pra tocar na “ferida” do machismo sem falarmos de capitalismo e vice-versa. Bem, tem uma escritora ucraniana que gosto muito [Svetlana Aleksiévitch], que em seu livro “A guerra não tem rosto de mulher” fala: “Outra complexidade está no fato de que estamos falando do passado com a língua de hoje. Como transmitir por meio dela os sentimentos daqueles dias?”. A história nos ensina, somos nós as protagonistas. O combate ao machismo e à violência é uma luta diária. Para nós, eu desejo força e união.