No mês dedicado à luta das mulheres, o CRESS Entrevista a assistente social, professora e ativista Mirla Cisne sobre os rebatimentos da atual conjuntura na vida das mulheres. “O feminismo vem crescendo porque ou resistimos ou deixamos de existir”, afirma. “Resistir é questão de sobrevivência nesses tempos medievais”.
Mirla Cisne é coordenadora da Seccional Mossoró do CRESS-RN, professora Dra. e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Direitos Sociais (PPGSSDS) da Universidade Estadual do RN (UERN). Integrante do Núcleo de Estudos sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisa das Relações Sociais de Gênero e Feminismo (GEF). É autora de diversos livros sobre questões de gênero e feminismo.
Confira a entrevista na íntegra
CR: Como você analisa os rebatimentos da atual conjuntura do nosso país na vida das mulheres?
MC: Vivenciamos um período ultraneoliberal de extrema direita conservadora, com nítidas expressões fascistas, racistas e heteropatriarcais. Nesse contexto, intensifica-se a responsabilização das mulheres pelas expressões da questão social e, para tal, a ideologia hetoropatriarcal é acionada ao máximo. Trocando em miúdos, diante da desresponsabilização do Estado com as políticas sociais, cresce a responsabilização sobre as famílias, ou melhor, sobre as mulheres, uma vez que no regime patriarcal somos vistas como um ser natural que têm a obrigação de estar a serviço/cuidado dos outros, ainda que isso custe todo o nosso tempo e se dê em detrimento das nossas necessidades e desejos.
CR: Que perspectivas você enxerga para o movimento feminista diante do avanço neoliberal no Brasil?
MC: Na contraposição ao crescimento do conservadorismo neoliberal, percebo uma crescente organizativa das mulheres. Temos tomado a dianteira em lutas massivas no país. As maiores manifestações de rua do último período foram protagonizadas pelas mulheres. Há inúmeros coletivos autônomos de mulheres sendo construídos, além de muito ativismo na arte, especialmente na música, que tem demonstrado a importância da resistência feminista para a construção de uma contra-hegemonia. Assim, enxergo no feminismo um sujeito coletivo que, na sua diversidade, contrapõe-se ao sistema heteropatriarcal-racista-capitalista que vivemos. É junto às mulheres negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, transexuais, travestis e trabalhadoras que esse sistema encontra não apenas o seu segmento mais oprimido e explorado, mas um sujeito político antagônico com imensa capacidade de resistência. Aliás, o feminismo vem crescendo porque ou resistimos ou deixamos de existir. Resistir é questão de sobrevivência nesses tempos medievais.
CR: Quais os desafios para o Serviço Social brasileiro diante deste quadro?
MC: São inúmeros e todos se sintonizam em uma direção: a luta contra a bárbarie posta. Sem pretensão de responder a essa pergunta, arrisco citar alguns desafios: desvelar criticamente a realidade, em uma perspectiva de totalidade, sem cair em armadilhas que nos dividam e isolem uns/umas dos(as) outros(as); identificar e fortalecer as resistências e lutas da classe trabalhadora, a qual pertencemos; lutar por melhores condições de autonomia (ainda que relativa) profissional, para isso, entendo que a luta por concurso público é fundamental; fortalecer nossas entidades representativas (Conjunto CFESS-CRESS, ABEPSS e ENESSO); permanecermos de mãos dadas com os movimentos, lutas e organizações da classe trabalhadoras e investir em formação crítica e continuada, com rigor teórico-metodológico, ético-político e técnico-instrumental, formando profissionais críticos(as), propositivos(as) e comprometidos(as) com a classe trabalhadora.
CR: Enquanto categoria profissional que está inserida nas lutas do povo brasileiro, como podemos enfrentar e resistir ao cenário de retrocesso?
MC: Não há outro caminho, precisamos estar onde há resistências e lutas, junto aos movimentos sociais e organizações da classe trabalhadora. Estar em sintonia com as lutas populares é fundamental para nos fortalecermos como trabalhadoras e profissionais que atuam em defesa dos direitos. Defender os direitos humanos dentro e fora do exercício profissional não é uma questão meramente de compromisso com a classe trabalhadora, é entender que somos parte dessa classe e, como tal, é indispensável resistir e lutar contra todos os retrocessos dos direitos duramente conquistados ao longo da história da classe trabalhadora. Nesse sentido, destaco a importância de imprimirmos em nossas reflexões, produções teóricas, ações e intervenções políticas e profissionais uma perspectiva antirracista, anti-heteropatriarcal e anticapitalista. Lutamos pela garantia e ampliação de direitos, mas queremos liberdade e igualdade substantivas e isso só pode advir das lutas coletivas classistas, superando identitarismos e construindo unidade na diversidade da classe trabalhadora, ou seja, unidade em torno de um projeto societário emancipatório que, necessariamente, deve ser feminista e antirracista.