O Cress Entrevista de novembro faz referência ao Dia da Consciência Negra, comemorado em 20/11, e aborda o tema racismo, com o assistente social João Paulo Diogo. Ele é pós-graduando em Estado e Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais, pela UFBA, é formador federal Fiocruz/Senad para Implementação no RN do Programa de Prevenção ao Uso de Álcool, Tabaco e Outras Drogas no ambiente escolar e também pesquisador associado ao Observatório da População Infanto-juvenil em Contexto de Violência (UFRN), além de militante do movimento negro.
O Conjunto CFESS-Cress deliberou, no último 46º Encontro Nacional, realizado em setembro, a campanha “Assistentes sociais no combate ao racismo”, tema a ser debatido pela categoria nos próximos períodos, com o objetivo de combater o racismo institucional e também mostrar à sociedade que o Serviço Social defende de maneira intransigente a liberdade e a igualdade e combate toda e qualquer forma de preconceito e opressão.
“Na prática profissional, devemos combater o racismo nos nossos locais de trabalho, visto que é um sistema de desigualdade que se baseia em cor/raça e pode ocorrer em órgãos públicos governamentais, corporações empresariais privadas e universidades, limitando a população negra no acesso aos seus direitos”, afirma João Paulo. “Além disso, devemos continuar como nunca fazendo a defesa da classe trabalhadora, contra os retrocessos de direitos, pois como assistentes sociais o nosso projeto ético-político estabelece nosso lado nesta trincheira”.
CR: Muita gente insiste em dizer que no Brasil não existe racismo e que há muito “mimimi” em torno das questões raciais. Como você vê essa ideia de que vivemos em igualdade?
JP: Compreendo que existem pessoas em nosso país que usam esse discurso na perspectiva de negar a condição histórica de privilégio que as pessoas não negras e não indígenas possuem. O mito da democracia racial baseado na ideia de mistura racial e cultural entre os povos negros, indígenas e brancos, não permitindo mais identificar e classificar os grupos fenotipicamente, no qual essas pessoas se apegam em difundir, apresenta-se como uma cortina de fumaça para esconder o descompromisso com a pauta da equidade racial, escamotear o genocídio que o povo negro vem vivendo em nosso país e resguardar os seus privilégios.
Um outro discurso que corriqueiramente vejo sendo utilizado é o biológico, de que todos somos humanos. Entretanto, a maioria das pessoas que utilizam esse recurso esquecem que a categorização de raça foi uma construção social para demonstrar a superioridade de um homem para o outro. Neste sentido, se quisermos igualdade, precisamos fazer com que pessoas não negras e não indígenas assumam sua responsabilidade com a dívida histórica com a promoção da equidade.
Um primeiro passo nesta direção é que essas pessoas e o Estado brasileiro parem de se recusar a assumir as evidências do tratamento desigual ao qual os negros estão submetidos em nosso país, apontadas por diferentes levantamentos e estudos acadêmicos de diferentes áreas. Podemos percebê-las no momento da abordagem policial, na qual o agente de segurança é formado para identificar o jovem negro como eterno suspeito; na segregação dos bairros de maioria negra; no acesso ao centro da cidade e regiões abastadas de equipamentos culturais, esportivos e outros, através da limitação de linha de ônibus que garantiriam mobilidade a estes lugares; na construção de barreiras de acesso às políticas públicas fundamentais e na proliferação do ódio religioso às religiões de matriz africana.
Precisamos combater o racismo velado que é perpetrado todos os dias como dose diária à população negra, que expõe essa população ao eterno risco diário de morte, que é catalisado quando se é, para além de negro, mulher, jovem, homossexual e pobre. Como dizia o líder negro Martin Luther King, “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
CR: Nos dados de homicídios no país e aqui no estado, os negros, especialmente jovens, são as maiores vítimas. Como você analisa essa questão?
JP: Como pesquisador e militante do campo das políticas públicas de juventude, membro do Observatório da População Infantojuvenil em Contexto de Violência – OBIJUV/UFRN, venho acompanhando esse processo bem de perto. É doloroso constatar que boa parte da sociedade potiguar vive em um estado de inércia, fecha seus olhos ou naturaliza os números dos corpos de jovens negros e negras estendidos nas ruas, justificados pelo discurso da violência urbana e guerra às drogas.
Esse estado de perda de indignação de boa parte da sociedade vem funcionando como chancela para os crimes à população negra, algo que os pesquisadores vêm chamando de “corpos matáveis”. Pode ser que algumas pessoas achem minha fala radical, mas para essas pessoas peço que busquem informações sobre número de resoluções de inquéritos envolvendo homicídios de pessoas negras e brancas no Estado, em especial na cidade de Natal, e terão suas evidências.
O inquietante deste cenário é que ele vem se agravando exatamente na década declarada pela Assembleia Geral da ONU como sendo a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), na qual o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Entretanto, não posso perder de vista que, frente a esse cenário, nos últimos 10 anos, alguns avanços foram conquistados à base de muita luta – embora hoje encontrem-se ameaçados em tempos tão temerosos -, como a política de cotas nas universidades, o Estatuto da Igualdade Racial, a lei de titulação de terras quilombolas, as cotas para negros em concursos públicos e a criação de organismos no campo do Executivo para tratar da pauta da equidade racial.
Contudo, é importante dizer que de nada adianta essas políticas se o Estado ainda continuar com a estratégia de criminalização e encarceramento da juventude negra, por meio do discurso de guerra às drogas, em que jovens usuários são configurados como traficantes, são julgados com o maior rigor da lei possível, sem o mínimo de direito à ampla defesa. A maioria não tem dinheiro para pagar advogados, ficando sua defesa a cargo da Defensoria Pública. Pelo número de defensores públicos disponíveis para o número exorbitante de casos, não há condições de garantir um acompanhamento mais atencioso na defesa dos casos, levando, na maioria das vezes, ao encarceramento deste jovem, que dentro dos presídios é obrigado a associar-se a uma facção para se manter vivo.
Reproduzo aqui a fala dada em um artigo para um jornal inglês, do Ministro do Supremo Luíz Roberto Barroso, que disse: “A insanidade dessa política é surpreendente: destrói vidas, gera piores resultados para a sociedade, é cara e não tem impacto no tráfico de drogas. Apenas superstição, preconceito ou ignorância podem fazer alguém acreditar que isso é efetivo”.
CR: A violência contra a população negra se materializa também na intolerância religiosa. De que forma o Estado e a sociedade devem atuar para combater essa forma de violência?
JP: Sim, vemos vários ataques às religiões de matriz africana que vêm sendo realizados por segmentos ditos cristão, em especial na região metropolitana de Natal. Acredito que os ataques às comunidades tradicionais de terreiro, para além de religiosos, são ataques orquestrados no sentido de apagar os registros históricos das comunidades tradicionais negras, porque, para além de cunho religioso, essas comunidades são verdadeiros arquivos vivos das línguas, costumes, culinária e tradições de comunidades africanas trazidas como escravizadas para o Brasil.
Como resposta à questão, acredito que Governo do Rio Grande do Norte deve fazer cumprir a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), que foi instituída em 2007, por meio do Decreto nº 6.040, salvaguardando as comunidades e seus líderes destes ataques. Também é preciso garantir um processo de investigação mais rigoroso e punições administrativas e educativas aos responsáveis pelos atos de intolerância.
Um outro caminho a ser tomado é a promoção do diálogo interreligioso e campanhas educativas neste sentido, pois onde existe fé não pode haver ódio, mesmo havendo diferenças. Por fim, acredito que precisamos garantir uma educação antirracista para a geração presente e futura, e para tal a aplicação da Lei 11.645/2008, de ensino da cultura negra e indígena, será de extrema importância.
CR: Quais os desafios para o/a assistente social, hoje, em tempos de avanço do conservadorismo também nas questões raciais?
JP: Na nossa prática profissional, devemos combater o racismo institucional nos nossos locais de trabalho, aqui entendendo o racismo como um sistema de desigualdade que se baseia em cor/raça que pode ocorrer em órgãos públicos governamentais, corporações empresariais privadas e universidades (públicas e privadas), limitando a população negra no acesso aos seus direitos.
Além disso, devemos continuar como nunca fazendo a defesa da classe trabalhadora, contra os retrocessos de direitos, pois como assistentes sociais o nosso projeto ético-político estabelece nosso lado nesta trincheira.
Por fim , agradeço pela oportunidade da entrevista. Como dizia um grande poeta palmarino chamado José Carlos Limeira, “por menos que conte a história, não te esqueço meu povo, se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”.