O Cress Entrevista de janeiro traz um assunto atual e que diz respeito a toda a sociedade: a crise penitenciária no estado e no país. A entrevistada desta edição é a assistente social Claudia Gabriele Duarte, que pesquisa o sistema penitenciário potiguar e é mestre em Serviço Social e professora universitária.
“A busca incessante pela efetivação do compromisso ético-político assumido a partir do nosso projeto profissional torna-se um dos principais desafios do/a assistente social que atua no sistema prisional”, afirmou. “Ainda mais os desafios para consolidar os compromissos assumidos na defesa intransigente dos direitos humanos, a luta contra todas as formas de preconceito e o compromisso com a qualidade dos serviços sociais prestados aos/às presos/as”.
Confira a entrevista na íntegra
C: Estamos em meio a uma profunda crise do sistema prisional no estado e no país, que tem raízes no seu surgimento. Como você analisa a situação das penitenciárias do Brasil?
CG: As penitenciárias brasileiras hoje se apresentam como verdadeiros depósitos de pessoas – a massa carcerária, hoje, é composta pela população mais pobre e vulnerável da nossa sociedade, ou seja, pobres, jovens e negros -, sendo utilizados apenas como mecanismo simbólico de coerção do Estado frente ao aumento da violência e da criminalidade no país. São mecanismos que demonstram a total ausência de uma política pública voltada exclusivamente para a questão prisional enquanto questão social.
Fala-se em crise atual, mas o sistema sempre esteve em crise desde que o Estado abandonou sua gestão administrativa na prática. Culpa-se as facções ou organizações como responsáveis pelo caos, mas esquecem que estas são frutos justamente desta omissão e ingerência do poder público. Não se pode de modo algum tolerar verdadeira “carnificina” de pessoas sob a tutela e olhar de um Estado que deveria “proteger, assegurar e combater a violência”. Torna-se bem mais fácil culpabilizar o outro do que assumir e ineficiência pública.
Parafraseado a professora socióloga Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, são grupos que passam a surgir no país a partir dos anos de 1990 e que estão se nacionalizando, tomando um espaço de ausência do Estado, apresentando justamente uma ideologia “política” de “união dos presos contra um Estado Opressor”. Claro que é uma forma de “revide” ou “revolta” pela reprodução da violência, no entanto denuncia justamente a inoperância do poder público frente às problemáticas nas prisões brasileiras.
Nesse cenário, o que temos na contemporaneidade são ações voltadas exclusivamente para pensar na construção de presídios e em aumentar o efetivo de guardas – diga-se de passagem presídios construídos às pressas, superfaturados, com promessas de consolidar o que preconiza a Lei de Execuções Penais, mas, na prática, construídos com estrutura inadequada. O grande exemplo é o Presídio de Alcaçuz, que foi construído sob um terreno de dunas. Quanto aos guardas formados por agentes penitenciários e policiais militares, estes trabalham em um número efetivo bem aquém do necessário e em condições de insalubridade e periculosidade altíssimos, afetando inclusive a saúde. Desse modo, as penitenciárias brasileiras vêm sendo utilizadas em tempos de crises (como o atual), como espaço para expressões populistas de um governo que pensa apenas de modo imediatista e em números, sem pensar na raiz do problema, que é o agravamento da criminalidade e da violência enquanto expressões da questão social.
Portanto, o sistema penitenciário brasileiro tornou-se espaço de reprodução da situação de negação de direitos, que a massa carcerária já vivenciou antes do seu aprisionamento, ou seja, que reproduz violações de direitos básicos como: saúde, educação, alimentação, lazer, dentre outros que estão previstos na própria Lei de Execução Penal e, claro, na carta Magna de 1988.
O mais agravante na realidade brasileira é que o sistema penitenciário só é alvo de intervenções quando se há rebeliões e as violências vivenciadas cotidianamente por aqueles que as habitam vêm a público para sociedade, como forma de ameaça à “utópica paz social vigente”, como é o caso destes motins que estamos vivendo em todo o país.
Por fim, não podemos esquecer de que este sistema também penaliza as famílias dos/as presidiários/as deste país, que são verdadeiras vítimas deste Estado opressor e encarcerador. Recebem tratamento desumano em dias de visitas e são criminalizadas pelo parentesco com alguém que cometeu um crime. Nesta barbárie que estamos vivendo no Rio Grande do Norte, sequer conseguem ter a certeza de quem são seus entes mortos, pois o próprio Estado não presta assistência e nem tem a real certeza da quantidade de presos em suas unidades prisionais.
Resumindo, é um sistema literalmente falido, que está muito longe de atingir o seu propósito, que seria um espaço para “ressocialização” daqueles que cometeram algum ato “criminoso” contra a sociedade. Necessita que o Estado provoque as mudanças necessárias na vida destas pessoas, pelo acesso à educação, qualificação profissional e trabalho, dando a esses agentes novas oportunidades e perspectivas de vida após o cárcere. Mas as prisões estão muito longe de ser esse espaço. O que se observa são instituições que reproduzem ações opressoras e populistas de um Estado mínimo e que trata a questão social unicamente como caso de polícia.
C: Que medidas poderiam ser tomadas a curto e longo prazo para resolver ou amenizar a crise no sistema carcerário?
CG: De um modo geral, defendo a ideia da redução dos números de encarcerados e a não utilização das prisões como medidas exclusivas de enfrentamento da violência e da criminalidade no país. Nesse sentido, defendo a curto prazo: contratar gestores competentes tecnicamente para administrar presídios e ocupar os cargos de secretários de Segurança Pública e da Justiça e Cidadania; ações voltadas para “descarcerização” através de penas alternativas, para os crimes considerados menos graves e para réus primários; políticas de proteção à criminalidade e à violência para jovens em situação de vulnerabilidade social, incentivando principalmente a educação, a qualificação profissional, trabalho e geração de renda; julgamento em caráter de urgência dos presos considerados provisórios que superlotam os presídios, sem nenhuma perspectiva de resolução da sua pena (estima-se, de acordo com Anuário de 2016 publicado pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, que o Brasil apresenta uma massa carcerária de 584.361 pessoas presas ocupando apenas 370.860 vagas em todo o país, sendo cerca de 36% em situação de provisórios, resultando em números absolutos cerca de 212.178 pessoas); aumento no número de defensores públicos nos estados para dar suporte aos/às presos/as deste país que não têm como arcar com os custos de um processo e melhorar as estruturas dos presídios.
A longo prazo: implementar realmente uma política de segurança pública articulada com outras políticas como educação, trabalho, geração de renda, saúde, lazer e cultura, com vistas a prevenir a violência e a criminalidade no país; aumentar os recursos destinados ao Fundo Penitenciário Nacional (segundo o Anuário de 2016 publicado pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, o Brasil destina apenas 2% do orçamento do Ministério da Justiça a ele) e intensificar estudos e parcerias com universidades para pensar projetos sociais voltados para a massa carcerária e que tragam uma real situação do sistema prisional.
C: Quais os principais desafios para o/a assistente social que atua no sistema carcerário, hoje?
CG: O sistema penitenciário é um dos espaços sócio-ocupacionais que fazem parte da área sócio-jurídica e torna-se um dos âmbitos urgentes e de extrema necessidade de intervenção profissional do/a assistente social, por tratar-se de um espaço onde as expressões sociais são latentes e o enfrentamento não existe de maneira eficaz por parte do Estado. Por isso, a busca incessante para efetivação do compromisso ético-político assumido a partir do nosso projeto profissional torna-se um dos principais desafios do/a assistente social que vem ocupar esse espaço, a destacar principalmente os desafios para consolidar os compromissos assumidos na defesa intransigente dos direitos humanos, a luta contra todas as formas de preconceito, autoritarismos e discriminação, bem como o compromisso com a qualidade dos serviços sociais prestados a esse público que ocupa as prisões brasileiras.
Além disso, os desafios esbarram também nas condições objetivas de trabalho, nesse sentido, o ponto de partida é a necessidade do reconhecimento do Estado para contratação de profissionais aptos a ocupar esse espaço, pois temos pouquíssimos/as assistentes sociais trabalhado nos presídios do país. Não tenho estimativa oficial, mas pela realidade que conheço no estado, apenas uma profissional é reconhecida, no sistema gerido pelo governo estadual, pelo federal. Aliás, nas prisões federais houve concursos para o cargo de Assistente Social, mas não sei se todos/as foram convocados/as.
Vejam que a realidade é contrária à própria Lei de Execuções Penais, que prevê a prevalência de uma equipe técnica de classificação para atuar junto aos/às presos/as do país, com vistas, de acordo com o Art. 6o, a elaborar o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório. Garantindo que a pena seja cumprida de uma maneira mais digna e que não se viole os direitos humanos. Nesse sentido, fazendo parte desta comissão, é necessária a presença, além de um/a assistente social, de acordo com o art. 7º, diretor/a, dois chefes de serviço, um/a psiquiatra e um/a psicólogo/a, quando se tratar de condenado à pena privativa de liberdade.
E ainda destaca-se a precarização na disponibilidade de recursos materiais para efetivação do trabalho – como equipamentos, telefone, sala adequada, computadores, entre outros – e baixos salários. Em suma, um verdadeiro enfrentamento cotidiano a uma realidade que desafia o/a profissional a ser propositivo e estrategista diante deste cenário.
C: A falência do atual modelo prisional adotado no país, o modelo capitalista e a falta de efetivação das políticas públicas têm aumentado a violência no Brasil e no estado. O que teremos no futuro?
CG: Sabemos que a sociedade capitalista tem, em suas mãos, as prisões como um mecanismo muito eficiente de controle das massas, no que se refere a sua segurança pessoal e de seu patrimônio. Assim definida, a prisão se apresenta na sociedade capitalista como mecanismo de poder, que traz consigo um conjunto de coerções exercido tanto de forma física quanto como psicológica, já que, mesmo que os egressos saiam do meio prisional, o seu estereótipo de ex-preso é “carregado” por toda a sua vida na sociedade, resultando num processo constante de discriminação e preconceito.
Nesse sentido, e dentro do panorama contemporâneo, sem querer ser fatalista, mas acredito que nosso futuro será incerto, caso não se repense a forma de gestão e organização do sistema penitenciário brasileiro, bem como as formas de enfrentamento dos índices de violência e criminalidade neste país.
Penso ser importante levar em conta as medidas já aqui mencionadas e defendidas por tantos estudiosos da área, principalmente no que se refere a repensar o tratar a questão prisional único e exclusivamente como caso de polícia ou algo isolado de um sistema maior. É necessário lutar pela efetivação das políticas públicas pelas categorias profissionais organizadas, bem como via movimentos sociais, para que possamos de fato conseguir um Estado mais presente e que perceba a necessidade de ver essas questões como questão social. Caso contrário, o maior penalizado será a própria sociedade, através da barbárie social que tanto reforça o discurso midiático do encarceramento.
C: Vivemos tempos duros de conservadorismo e retrocesso, com pessoas ditas “cidadãos de bem” aplaudindo barbáries como a ocorrida em Alcaçuz e repetindo que “bandido bom é bandido morto”. Como você enxerga essa consciência coletiva na perspectiva dos direitos humanos?
CG: De modo geral, penso que vivemos um sistema formado por um poder midiático, político, econômico e judiciário que reforça nas massas a violência e o medo e esconde assim o verdadeiro “culpado” por essa ideologia difundida: o Estado Brasileiro e sua omissão frente à segurança pública nacional e às políticas sociais de prevenção à violência e à criminalidade neste país.
Portanto, esse sentimento de impunidade, de ineficiência é transfigurado na sociedade brasileira através do binômio “cidadão de bem x bandido”, culpabilizando unicamente os sujeitos, sob uma perspectiva meritocrática, como se as oportunidade sociais, de trabalho e de acesso aos direitos fossem iguais para todos.
Assim, penso que os Direitos Humanos vêm sendo entoados de maneira equivocada pela mídia e junto às massas. Os Direitos Humanos perpassam não somente a defesa à liberdade de pensamento e de expressão, mas principalmente a igualdade entre os sujeitos, algo que reveste de outro conceito o ser cidadão, o que há muito tempo não acontece como preconiza nossos princípios constitucionais, em tempos de um Estado omisso e opressor.
Acredito – e para isso trago uma fala do Professor Alípio de Sousa Filho, da UFRN – que esse discurso da massa de que “bandido bom é bandido morto” é uma opinião social construída na e pela miséria cultural e intelectual espalhada pelas diversas classes sociais do país e que é afirmada na conversação cotidiana. É essa parcela da sociedade que concebe e requer do Estado que a lei e o que chamamos de Justiça sejam praticadas como vingança e para a qual as prisões devem ser “não hotéis”, mas espaços de sofrimento, humilhação, espancamentos, estupros, crueldade. E mais, são frases de um discurso ideológico e de poder que, simultaneamente, repete e reforça a opinião social que reclama por um Estado bárbaro, proferidas por encarregados da administração pública no país, quando o assunto é o sistema prisional brasileiro.
Não fazemos apologia à criminalidade, nem tampouco à violência. Entendo que aqueles que cometeram alguns destes atos devem sim cumprir judicialmente por isso, no entanto, não é através da reprodução da violência e da punição física que iremos reverter esse quadro. Isso é retrocesso, é voltar ao Código de Hamurabi quando se defendia a filosofia do “olho por olho, dente por dente”, isso é barbárie.