A assistente social Floriza Soares conversa sobre o direito à cidade na edição de dezembro do Cress Entrevista. Ela falou sobre a questão urbana, o impacto do projeto capitalista nas cidades e a relação do Serviço Social com a temática. “No contexto urbano, a atuação profissional do/a assistente social perpassa reconhecer os sujeitos historicamente construídos na sociedade de classes”, diz.
Floriza é formada na Universidade Federal do RN (UFRN) e mestranda em Serviço Social na mesma instituição. Já atuou no Setor de Planejamentos e Projetos Urbanísticos e Ambientais da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal e já facilitou cursos e proferiu palestras na área da questão urbana e direito à cidade.
Confira a entrevista
C: Como você analisa, na conjuntura atual do país, a questão urbana?
FS: Estamos vivenciando um momento bastante difícil para a classe trabalhadora, de retrocessos dos direitos sociais conquistados historicamente com muita luta. Um período de crise que se alastra nos aspectos econômicos, políticos e sociais. Vivenciamos uma retomada dos ideais neoliberais, ancorados a interesses do capital internacional que materializam-se no governo ilegítimo de Michel Temer. Logo, as nossas cidades são reprodutoras dos anseios de um projeto de poder que tem o lucro como base.
Pensar a questão urbana na atual conjuntura brasileira é atrelá-la às contradições que constituem a sociedade capitalista. Assim, as cidades são espaços de produção e reprodução do capital à medida que se apresentam mercantilizadas. Entretanto, como espaço de extrema desigualdade e disputas de interesses distintos, o solo urbano é também cenário de lutas sociais em torno das mais diversas questões que o constroem, como mobilidade, moradia, saúde, educação, lazer.
Em tempos de ofensiva conservadora, refletir acerca da questão urbana requer uma análise íntima com as discussões que envolvem o “direito à cidade”. A cidade como um direito coletivo e igualitária a todos/as é também um processo permanente de luta contra as mais diversas formas de opressão. A violência contra a mulher, o genocídio da juventude negra e as práticas homofóbicas são algumas das expressões de uma cidade em que as relações e a reprodução da vida social baseiam-se na produção e acumulação de capital.
Temos hoje no Brasil um Congresso que é a representação dessa lógica, a chamada bancada do “boi, da bala e da bíblia”, que manifesta o poder econômico e político das grandes empresas internacionais, da milícia e das igrejas (especialmente evangélicas). O primeiro grupo valida a influência do agronegócio, que sustenta o lucro das grandes empreiteiras – estas, inclusive, herança da ditadura militar, são as grandes beneficiárias no setor de obras públicas e protagonistas da especulação imobiliária no solo urbano. O segundo, segue cumprindo o papel coercitivo do Estado, especialmente de criminalização aos movimentos sociais. O terceiro manifesta seu poder conservador legitimando, por exemplo, a homofobia. Interessante notarmos que essa “bancada do horror” retoma grandes pilares do capitalismo: a família e a propriedade privada. Nesse sentido, reivindicar a cidade também significa reivindicar o sistema político.
A PEC 55 aprovada no Senado nos últimos dias é uma afronta aos direitos sociais e representa um verdadeiro desmonte das políticas públicas. Entretanto, o momento é também de efervescência de lutas: as ocupações das escolas públicas e universidades e as mobilizações sindicais e estudantis em geral nos mostram que a cidade deve ser ocupada. Aprendemos com a história que “o parlamento, o congresso sempre foi espaço da luta de classes da burguesia. O teatro, as ruas, as praças, esses são os espaços de luta de classes da classe trabalhadora.” Sigamos!
C: A cidade é lugar de conflito, de disputa de projetos de sociedade. Como se dá a atuação política e técnica do/a assistente social nesse contexto?
FS: Temos um projeto ético da profissão que também é político, ou seja, um projeto ético-político profissional que posiciona o serviço social em defesa da classe trabalhadora. Nesse sentido, a atuação política e técnica do/a assistente social estão intimamente relacionadas, ou melhor, não estão dissociadas. E no contexto urbano a atuação profissional do assistente social perpassa reconhecer os sujeitos/as historicamente construídos/as na sociedade de classes.
A defesa dos direitos sociais básicos, como a moradia, exige possíveis mediações quando instrumentalizadas também pelo arcabouço teórico-metodológico e ético-político da profissão, na perspectiva de pensar o fazer profissional em uma dimensão de universalidade, de totalidade das relações sociais. Assim, a participação em conselhos, fóruns, conferências, espaços de debates da questão urbana, seja debatendo, formulando diretrizes ou articulando estratégias, associada ao fortalecimento dos movimentos sociais de luta pela reforma urbana, amparam uma prática profissional dialógica com as atribuições e competências regulamentadas.
C: Falando da nossa realidade, quais as principais questões vistas em Natal no tocante ao direito à cidade a todos/as?
FS: Com relação a Natal, as problemáticas não estão dissociadas da lógica mercantilizada das cidades e com as particularidades que envolvem a construção social e histórica da cidade. Em Natal, tem a questão do turismo, que é “porta de entrada” para uma verdadeira mercantilização dos serviços, dos espaços públicos e um grande arcabouço da especulação imobiliária. O transporte e as construções sem limites, mesmo em áreas consideradas e regulamentadas como de “preservação”, são alguns exemplos.
Associado a isso, vemos cada vez mais um afastamento das populações de baixa renda, ou seja, uma população que não tem acesso à mobilidade, trabalho, saúde pública, educação de qualidade e se encontra em moradias de extrema precariedade em regiões onde drenagem e saneamento básico inexistem. É essa população que vive nas chamadas “Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis)”, as quais, conforme o Plano Diretor, caracterizam-se por sua dimensão socioeconômica e cultural da população com renda mínima até três salários mínimos.
Cabe pontuar que algumas dessas Aeis ainda não foram regulamentadas, o que implica muitas vezes em brechas para os interesses privados, já que esses espaços situados em encostas possuem valorização paisagística. Resultado disto são as remoções. Logo, os conflitos socioambientais constituem o cenário urbano da cidade. Natal é uma cidade de muitas belezas, riquezas naturais, mas também de muita pobreza. As contradições disto revelam as questões acima pontuadas e sinalizam o “direito à cidade” como urgente e atual na agenda política de todos/as que defendem uma cidade mais justa e igualitária.
C: Que políticas precisam ser efetivadas em conjunto para garantir o direito à cidade?
FS: A garantia do direito à cidade, em um primeiro momento, associamos ao direito básico à habitação. Faz-se necessário pensar, então, o conjunto de políticas que constroem o “habitar”, vivenciar a cidade com qualidade. Políticas de infraestrutura, como drenagem, pavimentação e saneamento básico, são essenciais e devem dialogar com políticas públicas de educação, saúde, trabalho, entre outras. Na verdade, a transversalidade dessas políticas é que possibilitará o direito à cidade.
C: Quais os principais desafios do Serviço Social frente ao conservadorismo e ataque de direitos vistos com o atual governo?
FS: Os principais desafios para o serviço social frente ao conservadorismo e aos ataques que temos sofrido estão relacionados às diversas expressões da questão social: as práticas racistas, homofóbicas, a violência de gênero, as remoções, as práticas higienistas, associadas ao verdadeiro desmonte das políticas sociais e dos retrocessos aos direitos trabalhistas, apontam para grandes desafios, entretanto apontam também para um horizonte de organização e lutas da categoria.