CRESS Entrevista Andréa Lima sobre o Dia da Visibilidade Lésbica

Neste Dia da Visibilidade Lésbica (29/08), o CRESS Entrevista Andréa Lima sobre a sua história, a data, a importância da luta coletiva contra a lesbofobia e o papel do Serviço Social na defesa da liberdade e da diversidade.

Andréa é assistente social; professora Drª do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRN e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Questão Urbana-Ambiental, Movimentos Sociais e Serviço Social (QTEMOSS).

“Eu me apaixonei por uma mulher, mas faltava a coragem política/coletiva, faltava a visibilidade lésbica, que, para mim, vem sim acompanhada de uma práxis. Isso o Serviço Social me ensinou”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra

CR: O que o Dia da Visibilidade Lésbica representa para a sua vida, militância e fazer profissional?

AL: A primeira coisa que tenho a dizer é que estou falando aqui como uma mulher lésbica e como assistente social. Hoje é um dia de luta, de combate à lesbofobia, ao preconceito e à violência contra nós mulheres que ousamos viver nossos amores, romper a barreira de uma cultura racista-cis-hetero-patriarcal que oprimiu, queimou nas fogueiras, silenciou, invisibilizou secularmente as mulheres em todas as dimensões das nossas vidas.

Não é fácil ser mulher, não é fácil ser lésbica. Exige mais que paixão, exige também consciência de classe e feminista, coragem e combatividade. Foi preciso “quebrar as portas dos armários”. Foi necessário que mulheres lésbicas que me antecederam, que nos antecederam, ocupassem os fronts das batalhas, porque falo, também, por milhares de lésbicas que lutaram por direitos para que hoje minimamente possamos falar sobre isso no Brasil, pelo menos até agora.

Veja, eu me apaixonei por uma mulher, mas faltava a coragem política/coletiva, faltava a visibilidade lésbica, que, para mim, vem sim acompanhada de uma práxis. Isso o Serviço Social me ensinou. A militância entre os partidos que convivi, os movimentos sociais que apoio e as entidades da categoria que participei fortaleceram meu entendimento crítico sobre a imposição da heterossexualidade e negação da diversidade sexual.

Venho de uma família grande, católica, com uma cultura hétero impregnada, composta de oito mulheres e quatro homens. Meus pais, embora bastante afetuosos, assimilaram valores de um ethos conservador. Parecia que eu também seguiria o rito familiar, até que me encantei completamente por uma mulher e fiz uma virada teórico-prática no modo de sentir e viver a vida afetivo-sexual.

Era 1997, meu primeiro semestre de Serviço Social. Este curso me revolucionou completamente do ponto de vista do amadurecimento político, da sala de aula à participação no movimento estudantil e posteriormente nas entidades da categoria. Foram inúmeras discussões, dentre outras, sobre as relações sociais do mundo capitalista, o ethos burguês, ética, valores, sexualidade, feminismo, gênero, diversidade. E foi onde conheci, também, um grande amor. As primeiras discussões sobre homossexualidade, lesbianidade, direitos sexuais e reprodutivos, racismo e luta por visibilidade aprendi aqui no Serviço Social.

Antes de “sair do armário”, a maioria das minhas amigas eram todas casadas ou namoravam com homens. Tinham filhas/os e perguntavam sempre quando eu ia casar e quem era meu namorado, supondo que eu tinha ou deveria ter relação heterossexual. Por um tempo, eu não ousava dizer o nome, tinha vergonha. Mas a cada discussão, a cada oficina e a cada seminário eu me fortalecia, superava preconceitos e enfrentava valores e práticas que naturalizavam a heterossexualidade e a maternidade.

Um dia contava para uma irmã, outro dia para uma amiga querida, no outro dia o irmão já sabia, em um mês a família toda sabia, só faltava minha mãe. Depois que conversei com ela, podia pagar até matéria de jornal para toda a cidade saber. É isso. A consciência política nos leva a sair da esfera individual para lutar nas trincheiras coletivas e não ter medo de amar.

O dia da Visibilidade para mim representa um dia de combate à lesbofobia. Em 2023, nessa mesma data, o Ministério dos Direitos Humanos registrou mais de cinco mil violações de direitos contra mulheres lésbicas. Isso se deve ao crescimento do lesbo-ódio. Muitas de nós não estamos mais nos “armários”, estamos nas ruas, nas praças, nos bares, nos shows, nos campos de futebol e nas universidades. Somos visíveis, algumas querem casar, querem ter filhas/os, outras querem apenas namorar. Queremos ser livres.

E o que nós assistentes sociais podemos fazer? Resgatar nossa campanha “O amor fala todas as línguas” [campanha do CFESS lançada em 2006], fazer valer o nosso Código de Ética, nossos princípios e nossa práxis em defesa da diversidade humana.

CR: Para você, quais os principais desafios, hoje, em uma conjuntura fascista, para a garantia de direitos para as mulheres lésbicas?

AL: Respondo à pergunta com uma única palavra: resistência. Aliás, resistir sempre foi o verbo que nos traduz enquanto mulheres e enquanto lésbicas, pois vivemos historicamente esse quadro complexo de exploração e opressão. O ascenso da ultradireita no Brasil, a partir do golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, contra a presidenta Dilma Roussef, e a chegada de Bolsonaro à presidência, desencadeou o recrudescimento do conservadorismo, que disseminou, com força deletéria, na minha análise, um projeto político racista, violento, de ódio e criminalização aos pobres, de misoginia, de LGBTfobia, de perseguição e genocídio aos povos originários. Inaugurou um estado sem política para os direitos humanos e para a diversidade. Fomentou a cultura de ódio, a intolerância religiosa, o racismo. Temos hoje uma sociedade forjada no irracionalismo político da ultradireita, polarizada, fundamentalista. Como fazer, volto a dizer: resistir.

Temos que unificar nossas lutas com os movimentos feminista, de mulheres lésbicas, com os movimentos antirracistas, ambientalistas, com os partidos de esquerda, sindicatos, com os conselhos profissionais, entre outros. Estamos em uma guerra política de posição e movimento, cada estratégia de luta é importante, mas é preciso consciência de classe.

Penso que precisamos, nesse momento, fortalecer o movimento de mulheres lésbicas, dar visibilidade para este movimento. E não dá para contar a história desse “apagão” histórico aqui, mas ele está imbricado, também, entre outros fatores, na opressão que sofremos. Precisamos de um enfretamento político, radical. Nós mulheres lésbicas precisamos saber que o futebol é importante, nos organizar culturalmente em rodas de poesia, samba, cordel, batucada, pois são manifestações de resistências fundamentais, agregadoras, territoriais.

Precisamos de estratégias políticas potencias e de longo prazo para defender e buscar ampliação dos nossos direitos. Precisamos construir lideranças lésbicas nas comunidades, fazer rodas de debate sobre as condições de vida e trabalho, considerando as relações sociais de classe, da raça, gênero/sexualidades. Precisamos apreender sobre a questão da diversidade humana, conhecer a Poesia de Safo, ouvir Ana Gabriela, Bia Ferreira, Obirin Trio, conhecer as mulheres lésbicas revolucionárias. Esse ano tem eleição. Precisamos nos mobilizar para votar em candidatas/os da esquerda comprometidas/os com as pautas e agendas de luta da população LGBTQI+, a crítica à sociabilidade capitalista, a diversidade, o combate ao racismo, o feminismo e os direitos humanos.

CR: Como o Serviço Social tem contribuído para a luta pela visibilidade lésbica?

AL: Marielle Fraco, mulher, negra, lésbica, vereadora, assassinada, tinha uma frase que sempre repetia, que eu gosto muito: “eu sou porque outras já foram”. O conjunto CFESS-CRESS se tornou um importante coletivo no enfrentamento à LGBTfobia. São muitos nomes, muitas mãos construindo esse legado no Serviço Social.

Lembro-me da campanha lançada em 2006 “O amor fala todas as línguas”, coordenada pela professora e então conselheira do CFESS Silvana Mara. Campanha que na época “chocou” parte da categoria. Diziam algumas assistentes sociais quando a campanha foi lançada: “Tanta coisa para discutir, e o Conjunto vai gastar tempo e dinheiro com isso”. É fundamental relembrar que o Brasil já neste período liderava o hediondo ranking de país que mais matava pessoas LGBTQI+ no mundo. O enfrentamento ao preconceito começava, portanto, dentro da profissão. É necessário dizer isso.

O amadurecimento teórico-metodológico e ético-político da profissão nos permitiu o entendimento da diversidade humana na sua dimensão ontológica, por isso a campanha trouxe como tema central a defesa intransigente da liberdade, a defesa da “livre orientação e expressão sexual”, o que, no decurso histórico, fortaleceria nosso projeto de sociedade e os princípios contidos no Código de Ética profissional.

Essa profissão nos orgulha tanto, porque nunca fugiu da luta. E a campanha continua viva e necessária, só precisamos avançar para radicalizar e capilarizar nossas estratégias. O Conjunto CFESS-CRESS tem uma agenda de luta sintonizada com os movimentos LGBTQI+ no Brasil, atua em diferentes frentes, em diversos campos profissionais.

Faço uma sugestão ao Conjunto de lançar uma nova campanha em 2026 em face do aumento da violência no campo da diversidade sexual e da identidade de gênero. Seria algo como “20 anos da campanha ‘O amor fala todas as línguas’ – um marco na defesa dos direitos LGBTQI+”. Seguimos precisando lutar.

CR: Algum poema que queira deixar registrado para este dia?

AL: Sim, tenho uma poesia. Mas antes quero falar da pessoa para quem eu dediquei a poesia. A gente falou sobre fascismo, ultradireita, LGBTfobia, porém não falamos sobre o lesbo-ódio que tem aumentado muito, principalmente sobre as mulheres consideradas não-feminilizadas.

O aumento da violência contra lésbicas se deve ao fato, entre outras questões, de que nós não estamos mais trancadas, não estamos mais escondidas, estamos visíveis, amando, sendo amadas, livres, querendo ter filhas/os, querendo casar com outras mulheres, querendo apenas viver. É sobre isto. Viver!

Mulheres lésbicas estão morrendo. Também não falamos sobre isto, que se chama lesbocídio. Muitas mortes de mulheres lésbicas não são tipificadas assim. Há um aumento crescente dos quadros depressivos de lésbicas nos últimos anos e logicamente que faz parte do tempo irracional e lesbofóbico que estamos vivendo.

A sociedade virulenta racista-cis-hetero-patriarcal-capitalista-LGBTfobica matou a Marylucia Mesquita, nossa grande companheira, com requintes de crueldade. A Mary foi sim uma das pioneiras na discussão da sexualidade, da lesbianidade no Serviço Social. Ela “tirou” muita gente do armário à força (risos), com sua determinação de tornar esse tema importante no debate da diversidade e do Serviço Social. De reconhecida militância do movimento lésbico no cenário nacional, a poesia conta um pouco dessa história. Agradeço ao CRESS-RN pelo espaço e por se fazer presente nas lutas!

O voo da iniquidade
(Andréa lima)

Para Mary que sempre me demandava poesia

“(…)E daí você voou…
deu seu voo mais alto, mais radical como as suas convicções,
ênfases, imperativos.
E quedou-se para um salto prematuro, irreversível, necessário?
Não te julgo. Quem sou eu? Nós?
Aqui nesta fábrica de produzir barbárie, desumanidade,
estamos a andar cambaleante
no fio tênue que separa a racionalidade,
do sofrimento psíquico.
Você não cabia em você,
O mundo é microscópico e você: plural em demasia.
Amava muito, odiava também, cobrava, exigia…
Gritava para ser ouvida…
E Marynha dançava, compilava músicas,
garimpava ritmos, contagiava, rodopiava
com seus pés sob o palco da realidade crua.
Desnudava-se nas anotações em milhares de agendas
e caderninhos adornados de fantasias, horários de reunião,
bilhetes de amor e de viagens,
frases de Osho, Marx e as imensas listas do que fazer…
A Mary se escrevia, se coloria…
E como esta moça cacheada sonhava e lutava pela vida…
Moça de personalidade forte,
de saia rodada e estampada de sol,
pioneira na minha vida a garantir o seu “lugar da fala”:
mulher, negra, lésbica, feminista e assistente social.
Era assim que se apresentava
apoteoticamente em qualquer lugar
enfrentando o preconceito, a LGBTfobia,
o racismo e a desigualdade social.
E antes que alguém possa pensar o que está pensando:
É isso mesmo! Mary nunca foi santa e nem quero santificá-la agora.
Não combina com ela.
A Mary sempre foi outras, todas!
Ainda bem…
Transgressora na alma
A coragem explodia nos seus poros,
E como ela problematizava!!!
O Serviço Social sempre era mais vivo em você,
mas você também aportava em outras paragens,
escalava em arco-íris, construía outros idílios…
E vem a pergunta,
onde você se perdeu?
Habitamos neste mesmo labirinto,
onde algumas e encontram seus “novelos”
e conseguem fugir das paredes espessas da depressão,
da solidão, do ocaso de nós mesmas…
Mas você não saiu… Não conseguiu.
Aqui havia mãos, colos, corações que te ajudaram,
que queriam te tirar desse poço profundo,
das tuas emoções desencontradas, alucinantes…
Mas não era só isso, não é Mary?
Faltava o trabalho, o salário, a dignidade,
a autonomia, e isso pesou, findou…
Esse sistema capitalista perdulário que nos transforma em coisas,
em objetos descartáveis e aniquila nossa subjetividade,
esvazia nosso conteúdo poético, humano e sensível.
E viramos um nada,
pois somos tomadas por um sofrimento perpétuo,
que nos colocam num ensaio usual para o nosso próprio fim.
Não quero lembrar do teu último olhar,
Quero lembrar do seu sorriso,
da sua inquietude,
dos seus simbolismos, dos seus penduricalhos,
pulseiras, dos seus detalhes, da sua imposição estridente.
Mas que fique em nós, a sua incansável batalha
por coisas justas, por direitos, amores livres…
Minha amiga querida, aqui neste mundo
Continuam nos matando, tem lesbocídio, cresceu a LGBTfobia
e não vejo mais você presencialmente nas batalhas.
Você faz muita falta nas trincheiras, Mary.
Você partiu mas fica seu legado,
ficam as boas lembranças,
fica tua presença marcante em verso, prosa e luta!!!

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