Esta segunda-feira (28) marca o Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Há vários anos, o Conjunto CFESS-CRESS vem discutindo a questão do aborto com a categoria de assistentes sociais no Brasil, por entender que a prática é um direito e a falta de acesso ao serviço é um grave problema de saúde pública e envolve os direitos humanos das mulheres. O Conjunto já aprovou, inclusive, as deliberações de apoiar a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil.
O Código de Ética da/o Assistente Social, no seu artigo 6º, indica que a categoria deve respeitar as decisões da população usuária, ainda que discorde delas. Essa autonomia da usuária e do usuário é essencial para fortalecer a população no acesso e garantia de direitos, e pode ser construída na própria orientação profissional.
Também para trazer mais elementos ao debate, o CFESS divulga hoje uma nota de repúdio ao Projeto de Lei 5.069/2013, que prevê a criminalização do anúncio de métodos abortivos e da prestação de auxílio ao aborto, principalmente por parte de profissionais de saúde. O PL tramita na Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. (clique aqui para ler)
Além disso, sabe-se que hoje há uma significativa parcela de profissionais atuantes em equipes multiprofissionais, que realizam atendimento de mulheres que desejam interromper a gravidez conforme as prerrogativas legais. Para fortalecer o debate neste 28 de setembro, de uma forma objetiva e sem preconceitos, o CFESS entrevistou a assistente social Ana Oliveira, que trabalha no Instituto de Perinatologia da Bahia (Iperba), da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), e fez algumas reflexões sobre a atuação de assistentes sociais na área, bem como sobre as formas de interrupção da gravidez hoje permitidas no Brasil.
Confira abaixo a entrevista completa:
CFESS – Quais as possibilidades hoje postas para a interrupção da gravidez, pela lei, no Brasil?
Ana Oliveira – Hoje no Brasil, existem três possibilidades de interrupção da gravidez: 1) de acordo com o que determina o Código Penal de 1940, em vigência em nosso país, a possibilidade de interrupção da gravidez está fundamentada em dois aspectos descritos no art. 128, que define a não punição do/a profissional médico/a, quando o aborto decorrer de gravidez de alto risco, sem que exista outro meio de salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro, mediante consentimento da mulher ou, quando incapaz, de seu representante legal; 2) a terceira possibilidade está colocada desde abril de 2012, quando, após longo percurso de análise de processo posto pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não ser mais crime o aborto de fetos anencéfalos. Logo, podem solicitar o aborto legal as mulheres cuja gravidez imponha riscos à sua vida, as que tenham gestação decorrente de violência sexual e as que tenham gestação de feto com anencefalia. Além da definição dessas três possibilidades, mulheres também têm recorrido as varas de justiça, no sentido de obterem autorização para interrupção da gravidez com feto que, comprovadamente, por má formação fetal, tenha incompatibilidade com a vida.
CFESS – Como deve ser o atendimento, no serviço de saúde, à mulher que interrompe a gravidez?
Ana Oliveira – O atendimento deve ser feito por equipe multiprofissional, de modo a preservar o sigilo e a integridade das mulheres que desejam interromper a gravidez, sem julgamentos ou preconceitos de qualquer tipo.
CFESS – A norma técnica do Ministério da Saúde sobre o abortamento é importante para o atendimento?
Ana Oliveira – O Ministério da Saúde, desde o Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, pressionado por reivindicações dos movimentos feministas e de mulheres por uma atenção integral à saúde das mulheres; pela discussão referente à questão dos direitos sexuais e reprodutivos enquanto direitos humanos das mulheres; dos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário; pelas garantias constitucionais e, posteriormente, Lei Maria da Penha, publicou diferentes normas referentes à questão do abortamento. As normas significaram a incorporação formal da demanda pelo Estado brasileiro, diante da gravidade do problema de saúde pública que representa, ainda colocado como uma das principais causas de mortalidade materna no país. Em 1999, a norma técnica “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes”, posteriormente atualizada em 2005 e 2012, trata da prevenção de ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis (DST/HIV) e gestação pós violência sexual, bem como orienta e disciplina a interrupção da gestação dela decorrente, enquanto aborto legal. A outra norma técnica, publicada na primeira versão em 2005 e atualizada em 2011, “Atenção humanizada ao abortamento”, trata especificamente da atenção às mulheres em processo de abortamento, incluindo aí, o abortamento inseguro. Elas significam um avanço na atenção às mulheres e adolescentes em situação de abortamento, já que sua discussão imbrica aspectos legais, morais, sociais e culturais, como também vulnerabilidades das mulheres, envolvendo desigualdade de gênero, normas culturais e religiosas, desigualdade de acesso à educação, falta de recursos econômicos e de alternativas de serviços, acesso a informação e direitos humanos, que fazem com que o abortamento, principalmente o inseguro, atinja mais gravemente, mulheres de comunidades pobres e marginalizadas. Elas provocaram a necessidade de, institucionalmente, serem revistos os protocolos de atendimentos, bem como as condutas e posicionamentos dos/as profissionais, frente àquelas que demandam atendimento, independentemente da etapa geracional em que estejam inseridas, da orientação sexual que tenham, da classe a que pertençam, da etnia, crença que professem, da raça/cor que declarem, do local onde residam, da serem ou não pessoas com deficiência, de estarem em situação de rua ou em cárcere e outras condições. As normas também expressam a importância da atenção com equipe multiprofissional, deslocando o olhar sobre a questão dos aspectos puramente médicos. O que era garantido por lei, no caso do aborto legal, passou a ser desafiado às equipes multiprofissionais e à gestão das unidades, no sentido da efetivação da atenção mais ampliada, abolindo a necessidade de registro de ocorrência em serviços de segurança pública e responsabilizando a gestão diante da ocorrência da objeção de consciência.
CFESS – Como o Serviço Social pode contribuir nesse atendimento no serviço de saúde?
Ana Oliveira – Assistentes sociais podem contribuir enormemente, enquanto parte da equipe multiprofissional responsável pelo atendimento. A categoria deve, utilizando-se da instrumentalidade e dos princípios e valores contidos no projeto ético-político profissional, atuar na defesa dos direitos das mulheres e na efetivação da atenção com atendimento digno e de qualidade, lutar contra o preconceito, a discriminação, o julgamento e a utilização de análises valorativas sobre os determinantes sociais e a cultura patriarcal e machista que incide sobre a decisão das mulheres. Cabe a profissionais de Serviço Social desvelar as relações de poder presentes sobre o direito à decisão das mulheres; mediar o acesso às redes de apoio; participar na articulação dos serviços, na construção de normas, rotinas e protocolos de serviço e institucionais que incorporem as demandas das mulheres e favoreçam a melhoria da atenção prestada, participar das discussões em equipe; elaborar laudos e pareceres e atuar na efetivação do direito ao atendimento. Essa posição exige a necessidade de uma intervenção mais ampliada, pautada na dignidade da pessoa humana, no direito das mulheres à definição dos rumos da sua vida com suporte do Estado, compreender o aborto como uma das expressões da questão social e contribuir para a desmistificação da maternidade compulsória. Importante também a participação nos movimentos sociais que tratam da questão e o combate às posições que indicam utilização de valores vinculados a aspectos religiosos, já que o Estado prestador dos serviços e responsável pela atenção deve ser laico.
CFESS – Na unidade em que você trabalha, qual a média de atendimento e qual o perfil das mulheres que recorrem ao aborto previsto em lei?
Ana Oliveira – A unidade em que atuo é o único serviço estadual que realiza o aborto legal no estado da Bahia (o estado conta com outro serviço na esfera municipal). Priorizamos, nos levantamentos de dados sistematicamente realizados, aqueles referentes ao aborto legal decorrente de violência sexual, por compreendermos que o aborto legal realizado em virtude disso representa riscos à vida da mulher, bem como aquele decorrente de gestação por anencefalia, e não se constituem em alvo de questionamentos preconceituosos, relativos à forma como a gestação ocorreu e o porquê da interrupção, como também da objeção de consciência de profissionais de outras categorias. Existe uma evolução no sentido do aumento da demanda na unidade, mas acreditamos que ainda é pequeno o quantitativo de aproximadamente 400 mulheres, diante do volume de registros em órgãos de segurança pública e da onda crescente de fatos envolvendo a violência sexual e doméstica, amplamente divulgados na mídia. Consideramos que a informação sobre a existência do serviço ainda é incipiente e haver temor das mulheres em buscar os serviços de saúde pós-violência sexual para receber a profilaxia de DST e a contracepção de emergência, sem contar as situações de violência crônica. Desde o inicio do atendimento, na unidade, às mulheres que solicitam o aborto legal, em 2002, realizamos o levantamento do seu perfil sociodemográfico, mediante a utilização de instrumento de coleta de dados, que contribui para a sistematização das informações, viabiliza a análise dos dados, a discussão das mudanças existentes e necessidade de adequação das rotinas institucionais e abordagem dos/as profissionais, além da discussão dos casos com equipe multiprofissional e apresentação de estudos em eventos da categoria e de debate da temática.
De 2002 a 2014, cerca de 400 mulheres foram atendidas. No primeiro ano foram duas mulheres e, no ano de 2014, 64 mulheres em situação de violência. Destas, 65,68% estavam grávidas e, destas, 64,08% solicitaram e tiveram o aborto legal realizado. O maior fator de impossibilidade de realização do aborto legal é a avançada idade gestacional no momento da busca do serviço, o que confirma a dificuldade de acesso aos serviços, a insegurança das mulheres em revelar a violência impetrada contra elas, principalmente por pessoas com as quais tem algum tipo de vinculação. Dados obtidos durante coleta de dados da minha dissertação registram a descrença de que o aborto legal será realizado em serviço público e a dificuldade de obtenção de informações sobre a existência do atendimento na rede. Este acompanhamento e sistematização dos dados nos permite afirmar que 87,13% das mulheres atendidas informaram ser solteiras, 6,7% casadas, 3,21% manterem união estável não formalizada civilmente e 0,8% divorciadas. Com relação a raça/cor autodeclarada 32,17% das mulheres foram pardas, 6,97% pretas, 9,65% brancas, 20,64% optaram por não fazer a autodeclaração e 30,5% foram inseridas na categoria ‘outras’, por autodeclararem opções não inseridas no leque referencial do IBGE, a exemplo de escura, morena, sarará, mestiça, mulata, preta. No que se refere à faixa etária, 30,29% das mulheres tinham entre 20 e 29 anos de idade, 22,78% estavam nas faixas de 10 a 14 anos; 21,98% entre 15 e 19 anos de idade; 15,28% entre 30 a 39 anos de idade; 6,97% entre 40 e 49 anos de idade e 1,6% menores que 10 anos de idade, 0,53% acima de 50 anos. A escolaridade: 45,57% tem o nível fundamental incompleto; 15,55% o nível médio completo; 10,18% não informou a escolaridade; 9,38% tem o nível médio completo; 6,16% nível superior incompleto e 4,55% completo.
Com relação à inserção no mercado de trabalho, o maior percentual de mulheres está inscrito nas que declaram não ter atividade laborativa formal, por serem estudantes. Outro dado também relevante é a religião declarada pelas mulheres. Embora a maioria informe ser católica, outras vertentes estão representadas, a exemplo das evangélicas e espíritas. Os agressores conhecidos tiveram o percentual de 55,22%, e os agressores desconhecidos foram em percentual de 44,23%. Existe registro da ocorrência de agressão conjunta por conhecidos e desconhecidos. Quando verificamos a procedência das mulheres atendidas, relativa ao local de residência, verificamos que 26,8% delas, o maior percentual, reside em outros municípios da Bahia e outros estados, o que confirma a dificuldade de acesso que enfrentam e revela o comprometimento da integralidade da assistência.
CFESS – Como a experiência nesse serviço contribui pra você como profissional?
Ana Oliveira – Atuar nesse serviço contribuiu: para a inserção nos movimentos que discutem a questão e lutam pela melhoria da assistência às mulheres, ou seja, ampliou o olhar político sobre a questão; para a definição da minha linha de pesquisa acadêmica no sentido de estudar a integralidade da atenção às mulheres que demandam a atenção no serviço de saúde para a realização do aborto legal, durante o mestrado; estimula permanentemente a contribuir na visibilidade da profissão enquanto categoria ética, com competência técnica, metodológica e política e detentora de um conhecimento que pode fazer a diferença no contexto da atenção à saúde reprodutiva e sexual das mulheres. Com certeza, não só em mim, mas em todas as colegas que compartilham, no cotidiano do serviço as inquietações e reflexões sobre a questão, esta é uma experiência enriquecedora, de empoderamento e crescimento enquanto mulheres, nos diversos aspectos de nossa diversidade enquanto grupo e no acolhimento às outras que nos chegam.
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*Fonte: CFESS