Na edição do mês de outubro, o Cress Entrevista aborda a temática criança e adolescente e conversa com a assistente social Ana Carolina Honório sobre os desafios da área para o Serviço Social, as principais violações constatadas no dia a dia profissional, o ECA e as questões postas em tempos de conservadorismo e retrocesso de direitos.
Ana Carolina da Costa Honório é assistente social pela UFRN, especialista em Políticas de Atenção da Criança e do Adolescente e atualmente trabalha na Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas) em Natal, lotada em uma Unidade de Acolhimento Institucional.
“É um grande desafio a efetivação dos direitos e a consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Vivemos um período de sucateamento e precarização das políticas sociais, limitando consideravelmente as possibilidades do exercício profissional e nos induzindo a respostas meramente burocráticas do cotidiano institucional”, disse Ana Carolina.
Confira a entrevista
C: O Serviço Social faz intervenções em várias dimensões da realidade social. Um aspecto importante é a relação com a temática “criança e adolescente”. Quais são os principais desafios postos para o/a assistente social que atua nessa área, atualmente?
AC: Como disse Marilda Iamamoto, “um dos maiores desafios que o assistente social vive no presente é desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade”. Sem dúvidas, esse é o primeiro grande desafio que sinto como profissional. O desafio de compreender que aquela criança ou adolescente não é um ser isolado no mundo, tem uma história de vida, uma família, uma subjetividade e sua realidade é demarcada por todas as negações e contradições da sociabilidade capitalista. Sem esse exercício, corremos o risco de cair no trabalho simplesmente executivo, mecanicista, acrítico.
Eu diria que outro desafio é na efetivação dos direitos e consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Vivemos um período de sucateamento e precarização das políticas sociais, limitando consideravelmente as possibilidades do exercício profissional e nos induzindo a respostas meramente burocráticas do cotidiano institucional. Infelizmente, esta situação tende ao agravamento com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 241, que tem como objetivo limitar os investimentos pelos próximos 20 anos em políticas como saúde, educação, assistência social e Previdência.
C: Quais são as principais violações que as crianças e adolescentes têm sofrido nos últimos anos?
AC: Segundo o Balanço Semestral do Disque Direitos Humanos (Disque 100), publicado em 2015, o tipo de violação mais recorrente é a negligência, com 76,35%, seguida da violência psicológica, com 47,76%. Depois vem a violência física, com 42,66%, e violência sexual, com 21,90%. Esses dados são facilmente verificados no cotidiano profissional. A negligência que se caracteriza pela ausência ou ineficiência no cuidado é uma das principais violações observáveis. Em muitos casos, a violação está relacionada à dependência ou uso abusivo de álcool e outras drogas por parte dos responsáveis pela criança.
Ressalto, ainda, que geralmente as violações estão associadas umas às outras, por exemplo: uma criança vítima de violência física pode ter sido negligenciada ou uma criança vítima de abuso pode sofrer também com violência psicológica. Cabe aos profissionais envolvidos desvendar a realidade na qual esta criança está inserida e acionar toda a rede para assegurar a proteção e os direitos dela.
C: Sabemos que o/a assistente social não trabalha sozinho na questão da criança e do adolescente. Como funcionaria uma rede ideal para atuar nessa área e garantir o cumprimento efetivo do ECA?
AC: Observamos que o sucateamento das políticas sociais interfere profundamente na efetividade do Sistema de Garantia de direitos das crianças e adolescentes. Afinal, com a saúde, educação e assistência social precarizadas, a lógica privatista e a desresponsabilização do Estado ganham mais força, formando um ciclo que nos direciona a um caminho de ainda mais precarização e desmonte das políticas sociais.
O debate para uma rede ideal de efetivação dos direitos da criança e do adolescente é muito amplo e perpassa muitas esferas. Para repensarmos coletivamente seu funcionamento ideal, seria necessário inicialmente termos condições objetivas e subjetivas para ponderar além dessa lógica de sucateamento das políticas sociais, que corta orçamentos, precariza as estruturas públicas, enxugam as equipes multiprofissionais. É necessário entender a gravidade posta no real, para podermos traçar estratégias e alcançar o ideal.
C: Vivemos tempos difíceis, com o avanço do conservadorismo e da barbárie. Nesse contexto, entram as bandeiras da redução da maioridade penal, as barreiras às discussões de gênero nas escolas etc. Como você avalia esse cenário e quais as perspectivas?
AC: “São tempos difíceis para os sonhadores”, como diria o cinema. Afinal, vivemos na sociedade do consumo e do lucro, do mito da meritocracia e do individualismo. Somando isso ao agravamento da crise econômica, observamos o avanço preocupante do conservadorismo. O cenário é assustador. O Estado, a mídia conservadora e até mesmo alguns religiosos propagam a ideia da responsabilização do indivíduo pelos problemas sociais, reduz a realidade social a uma problemática de ordem moral e subjetiva, tirando dessa forma a responsabilidade dos governos no investimento nas políticas sociais básicas e nas ações preventivas. Logo, a solução apresentada é tratar a pobreza como um caso de polícia, é condenar os trabalhadores empobrecidos e negros das periferias à marginalização e morte.
O debate acerca da redução da maioridade penal é também uma forma de criminalização da pobreza, além de uma tentativa de deslegitimar os avanços sociais apresentados pelo ECA (uma das legislações mais avançadas do mundo), baseando-se no mito da impunidade dos adolescentes que cometem atos infracionais. Outro exemplo da reação conservadora é observável no impedimento do debate da temática de gênero e diversidade nas escolas, sob a justificativa, em calorosos discursos de ódio, de que isso destruiria a família tradicional e induziria crianças e adolescentes à homossexualidade. A imposição posta pela bancada fundamentalista e seus simpatizantes não poderia ser mais absurda, afinal eles ignoram propositalmente a necessidade de visibilidade e respeito à diversidade humana para impor seus dogmas a toda sociedade.
Por fim, entendo que não há conquistas nem direitos sem as lutas sociais e organização da classe que trabalhadora. Com essa reação dos setores conservadores, a reorganização dos trabalhadores torna-se uma tarefa urgente.