Cress Entrevista Cristina Dias sobre mulheres e o direito ao aborto

O Cress Entrevista de março é dedicado às mulheres e à luta pela descriminalização do aborto. A entrevistada desta edição é a assistente social Cristina Dias, que é também militante feminista.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, o SUS atende cerca de 100 vezes mais o número de mulheres que sofreram algum tipo de complicação por causa de aborto clandestino, em comparação às mulheres que o fazem de forma legal.

“A maternidade deve ser uma decisão da mulher. E não controlada pelo Estado, através da criminalização, ou pela sociedade, por meio da moral religiosa”, afirma Cristina. “Não se trata, portanto, de ser contra a maternidade ou as mulheres que desejam ser mãe; trata-se da liberdade de escolha, da autonomia sobre seu corpo, sua saúde e sua vida”.

Cristina Dias é especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais, mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal do RN (UFRN) e militante do Núcleo Amélias e da Marcha Mundial das Mulheres.

Confira a entrevista

C: O 8 de março é um dia de celebrar, mas ainda há muito a ser conquistado quando se fala em direitos das mulheres. Para você, o que falta para avançarmos mais no debate sobre o aborto e o direito ao corpo?

CD: É preciso o Estado e a sociedade entenderem que o aborto é uma questão de saúde pública. Ter acesso ao aborto seguro é um direito que deveria ser ofertado para todas as mulheres por meio dos serviços de saúde e assistência pública. Esta possibilidade se restringe às mulheres que podem pagar para realizar o aborto em clínicas, de forma segura. As mulheres que não podem pagar correm risco de morte.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o procedimento de aborto seguro é realizado por meio de remédios abortivos ou métodos cirúrgicos e por profissionais médicos/as preparados/as para intervir com recursos adequados. Já o aborto inseguro é quando a mulher, em situação de desespero, faz uso de agulhas de tricô, cabides, pinças ou qualquer outro instrumento para tentar fazer o aborto. Além disso, correm perigo quando fazem uso de medicamento abortivo sem orientação médica ou de origem duvidosa, como também quando recorrem a clínicas clandestinas que, muitas vezes, não dispõem de profissionais preparados e nem ofertam os recursos adequados para o procedimento.

No Brasil, as situações em que as mulheres estão amparadas legalmente para o aborto seguro são: quando correm risco de morte, podendo conversar com seu médico para interrupção; quando o feto é diagnosticado como anencéfalo, não sendo necessário apresentar autorização judicial para interromper a gestação; quando é vítima de estupro, não sendo necessário apresentar Boletim de Ocorrência para exigir seus direitos e ser atendida pelo SUS. 

O Ministério da Saúde afirma que o SUS atende cerca de 100 vezes mais o número de mulheres que sofreram algum tipo de complicação por causa do aborto clandestino, em comparação às mulheres que o fazem de forma legal. Os dados correspondem ao ano de 2015, registrando o atendimento de 181 mil mulheres atendidas com complicações resultantes do aborto clandestino. Destas, 59 chegaram a óbito. Para a interrupção da gestação de forma legal, foram registrado 1.600 atendimentos, no ano anterior. 

No Brasil, qualquer mulher que decida não ser mãe, interrompendo uma gravidez não desejada, estará cometendo um crime com até três anos de detenção. A sociedade a condena com o julgo moral e religioso. O Estado regula o corpo da mulher, a tratando como criminosa. Enquanto isso, as mulheres seguem praticando o aborto inseguro, caladas, sozinhas. A culpabilização recai unicamente sobre a mulher. 

De acordo com o Ministério da Saúde, através do “Relatório Aborto e Saúde Pública: 20 anos de Pesquisa no Brasil”, a maioria das mulheres que viveram situação do aborto inseguro têm idade entre 20 a 29 anos, destas aproximadamente 70% são casadas, já são mãe e sua orientação religiosa é católica. Em se tratando da realidade das Nordeste, chega a 37% o número de mulheres sem estudos/sem instrução que provocaram o aborto, quantitativo este que é 7 (sete) vezes maior em comparação com as mulheres com formação superior completa, onde 5% destas provocaram o aborto. O aborto inseguro entre as mulheres negras corresponde a 3,5%, sendo o dobro quando comparadas as mulheres brancas que é de 1,7% (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística referente ao ano de 2013).

A maternidade deve ser uma decisão da mulher. E não controlada pelo Estado, através da criminalização, ou pela sociedade, por meio da moral religiosa. Não se trata, portanto, de ser contra a maternidade ou as mulheres que desejam ser mãe. Trata-se da liberdade de escolha, da autonomia sobre seu corpo, sua saúde e sua vida.  

C: O aborto é mais discutido sob o ponto de vista moral e religioso do que da saúde pública, da efetivação de políticas públicas, da liberdade da mulher. Enquanto assistente social, como você analisa isso?

CD: A descriminalização do aborto é uma medida necessária para enfrentar o tabu em discutir este assunto e superar o discurso moralista e religioso imposto atualmente. A legalização possibilitaria estudar cientificamente e com maior profundidade este fenômeno social concreto que atinge o cotidiano da vida das mulheres. Além de oportunizar que as mesmas exponham seus motivos, se assim desejarem, bem como recebam assistência à saúde física e mental de forma adequada. Porém, com a criminalização, a mulher é culpabilizada, enquanto o homem fica completamente isento, criminal e socialmente, de qualquer responsabilidade nesta situação, exceto para as situações denunciadas e constatadas como crime de violência sexual.

É importante salientar que atualmente o Congresso Nacional está representado por uma imensa maioria conservadora e orientada pelo fundamentalismo religioso, que demonstra sua força política apoiada por meio de movimentos como o “pró-vida” e “a favor da família”. Recentemente, em meados de 2015, o ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB), cassado por quebra de decoro parlamentar, apresentou projeto de lei que retirava o direito das mulheres estupradas de ter acesso ao aborto seguro. A organização e luta das mulheres, dos movimentos feministas e o apoio de outras forças políticas progressistas da sociedade conseguiram pressionar o Congresso e impedir a aprovação da Lei 5069/2013, de autoria do ex-deputado.

A construção social impõe papéis de gênero, através das relações de poder, impõe a sexualidade e a relação com o corpo, de forma diferente, para o ser homem e o ser mulher. Em se tratando da sexualidade das mulheres, são pelo menos dois papéis pré-determinados centrados na subalternidade e na reprodução. Na primeira condição, a sexualidade da mulher é direcionada para satisfazer o outro. Quanto ao segundo, se refere à procriação, à maternidade. A naturalização do ser mãe impõe que toda mulher só será completamente realizada com a gestação, a maternidade, o cuidado absoluto com o/a filho/a.

A maternidade não pode ser entendida apenas pela condição biológica ou por imposição social. A romantização da maternidade imposta pela sociedade capitalista patriarcal não se reflete em condições objetivas das mulheres, principalmente as mulheres negras e pobres, onde se registra a perpetuação da pobreza. A missão da procriação atribuída à mulher pelo fundamentalismo religioso não garante condições reais para criar uma vida. 

De modo que, enquanto assistente social, comprometida com o projeto ético-político desta categoria, que tem como valor ético central a liberdade, me cabe respeitar a decisão de cada mulher que decida pela maternidade e lutar pela legalização do aborto, para garantir o direito das mulheres que não aceitam a imposição social deste papel de ser mãe. Afinal, a gravidez indesejada possui vários determinantes, como a violência sexual, o desconhecimento do próprio corpo, o precário ou nulo acesso aos métodos contraceptivos, a ausência e/ou insuficiência de orientações necessárias ao uso correto de métodos contraceptivos, a precarização do SUS, além das relações machistas nas quais as mulheres estão inseridas, sendo constantemente violentadas sexualmente por seus parceiros, namorados, maridos. 

C: O/a assistente social realiza cotidianamente atendimentos a mulheres que abortam e presencia o negligenciamento nas condições em que essas operações são realizadas. Como seria uma rede mais efetiva de atendimento?

CD: O Estado, sendo laico, deve garantir políticas integrais que possibilitem concretamente a escolha da mulher em ser ou não mãe. Porém, o tabu que se insere na discussão política sobre o aborto a impede de decidir sobre sua vida. O controle do corpo e da sexualidade da mulher é uma prática comum durante a realização do planejamento familiar tradicional, que tende a relegar e fortalecer a função reprodutiva da mulher. As mulheres são julgadas por terem muitos/as filhos/as ou por não desejar tê-los. É comum nos serviços de Saúde sofrerem negligência e maus tratos ao buscarem assistência para o sofrimento decorrente da situação de abortamento, mesmo nos casos em que estão amparadas legalmente. Inclusive é vítima também desta criminalização a mulher que, por algum motivo, sofre aborto espontâneo. 

É necessário colocar a mulher na condição de sujeito, respeitando suas escolhas, sua subjetividade, sua singularidade. Para uma rede efetiva no atendimento à mulher em situação de abortamento, se faz necessário garantir o respeito à democracia, à laicidade do Estado, à igualdade de gênero e à sua dignidade como ser humano. É preciso ofertar atendimento a partir das suas necessidades, garantindo atendimento integral e humanizado, bem como orientando quanto às alternativas contraceptivas para evitar a repetição do aborto. 

Não cabe a mim, por nenhuma razão, opinar sobre a vida e a decisão da mulher. Não interessa se eu considero feio ou bonito. Não interessa se eu, pessoalmente, abortaria. Trata-se de respeitar as leis e de garantir a liberdade de escolha da mulher. É fundamental que as/os profissionais da rede não permitam que os aspectos sociais, culturais, econômicos, políticos, jurídicos, ideológicos e religiosos sejam limites para a garantia dos direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres, sobretudo visando a garantia dos direitos humanos das mulheres.

Desta forma, a defesa pelo fortalecimento do SUS é condição indispensável, a fim de que se efetivem serviços de Saúde com atendimento humanizado às mulheres em situação de abortamento. Isso garantindo rede integrada com a comunidade, trabalhando para a prevenção das gestações indesejadas e do abortamento inseguro, para a mobilização de recursos e para a garantia de que os serviços reflitam as necessidades da comunidade e satisfaçam suas expectativas. É preciso ofertar acolhimento e orientação para responder às necessidades de saúde mental e física das mulheres. Garantir atenção clínica adequada ao abortamento e suas complicações, segundo referenciais éticos, legais e bioéticos, conforme preconiza a nota técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, publicada pelo Ministério da Saúde em 2011. E, como já citado, realizar serviços de planejamento reprodutivo às mulheres pós-abortamento, inclusive orientações para aquelas que desejam nova gestação.

C: Como mulher e assistente social, o que você mais deseja nesse 8 de março?

CD: Na condição de mulher, negra, assistente social e feminista, luto pela efetivação e ampliação de políticas sociais e públicas para as mulheres que possibilitem melhorias reais em nossas condições de vida, sobretudo para as mulheres negras que estão sempre no topo das estatísticas em se tratando do precário ou nulo acesso aos direitos e lideram os dados de violência contra a mulher. 

Desejo a garantia do respeito às nossas identidades, subjetividades, orientações sexuais, de gênero e religiosas. Almejo, ainda, o acesso a creches públicas, para que as mulheres possam estudar e/ou trabalhar, como também a valorização do nosso trabalho com igualdade de salários, entre homens e mulheres, negras e não negras. 

Desejo o reconhecimento do trabalho doméstico, bem como a divisão destas tarefas, que sobrecarregam as mulheres em inúmeras jornadas. E, principalmente, a destituição deste governo ilegítimo, impedindo a retirada de direitos de trabalhadoras e trabalhadores, urbanos e rurais, a exemplo da reforma da previdência, que atinge sobremaneira a vida das mulheres. 

Outras Notícias

Dúvidas frequentes

Principais perguntas e respostas sobre os nossos serviços