CRESS Entrevista Cristina Dias sobre o Julho das Pretas

O CRESS Entrevista Cristina Dias neste mês para debater um tema caro ao Serviço Social: a vida das mulheres negras. O Julho das Pretas marca a luta por direitos e contra toda e qualquer forma de opressão e violação. Neste dia 25, celebramos o Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha.

 

Cristina Dias é assistente social, mulher negra, atua na área da Saúde e é mestre em Serviço Social. Além disso, é especialista em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais e militante do Movimento Brasil Popular e Amélias Mulheres do Projeto Popular.

 

Nossa entrevistada conversa sobre o seu cotidiano profissional, militância e como o Serviço Social contribui para a sua formação política e social. “O racismo e o patriarcado são escancarados no contexto de conservadorismo e impactam severamente a nós, mulheres negras”.

 

Confira a entrevista na íntegra:

 

CR: O que significa o Julho das Pretas para você e as mulheres negras?

CD: O feminismo negro promoveu o I Encontro de Mulheres Negras Afro Latino-americanas e Caribenhas, realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, no ano de 1992, onde foi definido o 25 de julho como o Dia da Mulher Negra Afro Latino-americana e Caribenha.

 

A Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a internacionalização deste dia no mesmo período. No Brasil, foi criado o Dia Nacional Tereza de Benguela e da Mulher Negra, sendo instituído pela Lei 12.987/2014 para celebrar uma lutadora histórica, que foi liderança quilombola e lutou contra o escravismo da população negra e indígena no século XVIII.

 

A sua resistência política ao processo de escravização resultou em sua prisão e morte por colonizadores. Ela é uma inspiração e exemplo para nós, pessoas negras, que vivenciamos e enfrentamos o racismo cotidianamente, numa sociedade forjada pelo mito da democracia racial.

 

Já no RN temos o Dia Estadual de Tereza Maria da Conceição Filha e da Mulher Negra (Lei 11.177/2022), que homenageia a memória desta que foi uma quilombola, nascida na comunidade Negros do Riacho, em Currais Novos. Em Natal, o Dia Municipal Tereza de Benguela e da Mulher Negra foi aprovado em 2020.

 

O Julho das Pretas representa um mês de incidência política na luta antirracista, onde o movimento de mulheres negras, organizações e movimentos sociais realizam ações políticas coletivas objetivando a visibilidade e o fortalecimento de nossas pautas, como o enfrentamento a todas as formas de violência, as injustiças raciais, a desigualdade de oportunidades e de renda, a intolerância e o racismo religioso, a LGBTfobia e a defesa dos direitos humanos das mulheres negras.

 

Cabe ressaltar que a luta antirracista deve ser anticapitalista, pois esta é uma condição indissociável, já que o racismo é estrutural e estruturante a este modo de produção. Para mim, o Julho das Pretas sempre trouxe inspiração no exemplo de mulheres negras que nos antecederam e outras tantas da contemporaneidade. Ressalvadas suas particularidades, cada uma delas em seu tempo e contexto social seguem incansáveis no enfrentamento ao racismo, ao machismo, à misoginia, ao patriarcado. São mulheres anônimas, de vida simples e absorvidas pelo trabalho doméstico e do cuidar, como as minhas mães, tias, primas e amigas queridas que nutrem sonhos por uma vida sem violência, com trabalho digno, com renda, com educação e igualdade de oportunidades. E outras tantas mulheres politicamente engajadas na luta, nos movimentos, partidos, instituições onde trabalham, no parlamento onde legislam, na educação onde lecionam, sobretudo, as companheiras ativistas que constroem os movimentos sociais e com as quais divido as trincheiras de lutas.

 

Ato em defesa da democracia e contra o fascismo – Janeiro/2023

 

CR: De que forma a luta antirracista atravessa o seu fazer profissional?

CR: Sou uma mulher negra, de pele não retinta, atuo como assistente social no Sistema Único de Saúde (SUS), na rede de urgência e emergência, em nível estadual e municipal, sendo concursada com vínculo efetivo em ambos os serviços. O atravessamento se dá de muitas maneiras cotidianamente, pois tenho consciência da minha condição de raça e classe nesta sociedade.

 

Sou afetada pelo racismo e exercito a atenção constante para identificar o racismo impactando a vida da/o usuária/o.  A minha atuação política na construção do movimento social Amélias e do Movimento Brasil Popular, bem como a formação profissional em Serviço Social, a priorização da educação permanente, por meio do acesso à pós-graduação, Lato e Stricto Sensu, me oportunizaram apreender elementos importantes que particularizam a formação social brasileira e que caracterizam as nossas relações sociais, subsidiando o meu letramento racial em construção. A inserção do Brasil no modo de produção capitalista, assim como em outros países de economia periférica, se dá pela dominação e exploração do trabalho de determinados grupos, que são discriminados pelo pertencimento étnico-racial. Por isso, o racismo é entendido como estrutural. Cabe ressaltar que, somado à determinação econômico-política, a perpetuação do racismo se fortalece com a negação de sua existência, por meio do mito da democracia racial e o contraditório processo de miscigenação. Além disso, em nosso Nordeste, essas particularidades são adensadas pelo elitismo e coronelismo, expresso pelas relações de mando e do favor. Então, esses são fatores sociais importantes que exigem de nós, assistentes sociais, o olhar crítico-reflexivo para a relação institucional que se estabelece permeada por atitudes racistas, tanto para a/o usuária/o do serviço, quanto para conosco profissionais negras/os.

 

Desvelar atitudes racistas tem sido o meu compromisso no exercício profissional, para, com isso, realizar as articulações necessárias, a fim de viabilizar o atendimento adequado à/o usuária/o, que é invisibilizada/o em suas dores, no acesso à informação, no acesso ao serviço.

 

Assim como a/o usuária/o, também vivencio o racismo, velado, logo, frequentemente negado, se ouso sinalizar a existência de atitude racista. É comum de identificar pela ironia, pela invisibilização da minha presença física, quando estou no espaço com um/a colega com passabilidade racial. Também se evidencia ignorando a minha fala, mas legitimando o mesmo discurso quando expresso por uma pessoa branca. 

 

Facilitadora em formação política no Curso Realidade Brasileira – Agosto/2023

 

CR: Como você analisa a relação entre o avanço do conservadorismo e a vida das mulheres negras no Brasil?

CD: O contexto de crise do capital é terreno fértil para o avanço do conservadorismo, uma vez que a classe dominante tem exercido protagonismo. Evidencia-se nas relações sociais pelo aparente apego, tanto ao tradicionalismo, quanto ao tecnicismo e, ainda, a uma suposta neutralidade, tendo como finalidade a manutenção do status quo.

 

O racionalismo capitalista tem o individualismo, a concorrência e a meritocracia como partes integrantes, resultando na exaltação do modo de vida dominante. Este modo hegemônico naturaliza e avança nas desigualdades étnico-raciais, de sexo, de classe e todo o processo de exploração e opressão inerentes à relação capital e trabalho. Assim, a atuação do racismo e do patriarcado é escancarada no contexto de conservadorismo e afeta diretamente as nossas vidas, enquanto mulheres, sobretudo impactam severamente a nós, mulheres negras.

 

Assistimos ao regresso no âmbito legislativo, judiciário e executivo. Ressalto aqui os direitos sexuais e reprodutivos como exemplo. Os discursos conservadores afirmam que são a favor da vida e contra a descriminalização do aborto. Mas se esta vida for negra, então “bandido bom é bandido morto”. A Pesquisa Nacional do Aborto, entre 2019 e 2021, constatou que uma em cada cinco mulheres negras para uma em cada sete mulheres brancas realizou aborto, portanto são oito em cada 10 mulheres realizando aborto clandestino.

 

O aborto está entre as cinco principais causas da morte materna, segundo a Organização Mundial da Saúde. As mulheres negras têm 36% mais chances de morrer por falhas na tentativa. Ao mesmo tempo, as mulheres negras são culpabilizadas por terem muitos filhos e sofrem criminalização da pobreza ao recorrerem à política de Assistência Social: “Ninguém quer mais trabalhar, porque fica pendurada no Bolsa Família”. Não bastasse isso, as mulheres negras são maioria em se tratando de violência sexual. O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública constatou que, no ano de 2023, o Brasil registrou um crime de estupro a cada seis minutos, sendo a maioria das vítimas mulheres e os agressores majoritariamente homens. Além disso, o perfil dessas mulheres é de meninas (88,2%), negras (52,2%) com até 13 anos (61,6%), de um total de 83.988 denúncias registradas de estupro e estupro de vulnerável. Os dados evidenciam que as desigualdades sociais que afetam a classe trabalhadora são aprofundadas pela condição de ser mulher e pelo pertencimento étnico-racial. O projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto legal acima de 22 semanas ao crime de homicídio, é um atentado aos direitos reprodutivos. É uma atrocidade na vida de todas as mulheres, inclusive daquelas que se afirmam contra o aborto. Todas nós mulheres estamos vulneráveis a violências sexuais, somos o alvo da misoginia, do machismo e do patriarcado. Atualmente, a legislação possibilita que a interrupção da gestação seja realizada em três situações: estupro, risco de morte à mulher e anencefalia do feto.

 

Outro aspecto fundamental a se destacar é como o aprofundamento do neoliberalismo e do ajuste fiscal avança na vida da classe trabalhadora, resultando em redução dos direitos, como as reformas trabalhista e previdenciária. Observa-se que a reforma trabalhista causou a precarização das relações de trabalho, contribuiu para o aumento do desemprego e não reduziu o nível de informalidade. A formação de uma classe trabalhadora com entidade jurídica, com CNPJ (MEI), trouxe a fantasia da autonomia para o/a trabalhador/a. Porém, o contratante é o maior beneficiado nesta relação, porque exige do/a trabalhador/a a responsabilidade inerente à relação celetista sem pagar os direitos trabalhistas desta categoria.

 

No que tange à reforma previdenciária, temos o aumento da idade para a aposentadoria de quem dedicou anos de contribuição e tempo de trabalho, e a dificuldade no acesso ao auxílio-doença, mesmo cumprindo os requisitos médico e previdenciário. Além disso, colocou à margem deste direito as/os trabalhadoras/res do campo, das águas e das florestas, com a exigência de contribuição previdenciária para um segmento de trabalhadoras/es que o Estado e as políticas sociais sequer alcançam seus territórios. Em todos estes cenários, são as mulheres, sobretudo as negras, quilombolas, indígenas, ribeirinhas, do campo, das florestas e das águas, as mais afetadas, porque o não acesso a esses direitos sociais aprofunda o empobrecimento. São expressões do avanço do conservadorismo e que evidenciam o racismo inerente à acumulação capitalista.

 

Grito dos Excluídos – Setembro/2019


CR: Como o Serviço Social contribui e pode contribuir para uma sociedade antirracista, na sua visão?

CD: Eu tenho muito orgulho de ser assistente social, porque os fundamentos da nossa formação profissional em Serviço Social, a partir do Congresso da Virada de 1979, são críticos às relações capitalistas de produção e, consequentemente, à exploração e opressão da classe trabalhadora em suas múltiplas manifestações. A internalização desta análise pelo conjunto da categoria profissional é fundamental para a luta antirracista, que deve ser anticapitalista. Não há como ser antirracista e defender a racionalidade adotada pelo capitalismo, como o individualismo e a meritocracia.

 

É importante adensar a nossa formação profissional com autoras/es negras/os que têm contribuição na análise da formação social brasileira e do racismo, a exemplo de Clovis Moura ou ainda Lélia Gonzalez, referências no movimento negro, entre tantas/os outras/os. São autoras/es que, afetadas/os pelo racismo, foram/são invisibilizadas/os na academia, e dialogar com elas/es é um caminho necessário a ser percorrido por nós, assistentes sociais, como tem defendido a ABEPSS nas discussões das diretrizes curriculares por uma formação antirracista. Para nós, assistentes sociais, atuantes no Serviço Social das instituições e organizações públicas e privadas, é preciso ter olhar crítico para reconhecer as práticas racistas e a escuta atenta ao acolhermos usuárias/os, que frequentemente nos buscam para reportar uma situação de violação de direito. Reconhecer e legitimar a identidade social e racial de nosso público de trabalho, sem estereotipação, sem tutelá-lo, sem pragmatismo. Para nós, já atuantes na profissão, entendo que a educação permanente deve ser o horizonte, porque é o conhecimento que subsidia a análise crítica da realidade, que embasa a nossa instrumentalidade profissional para uma atuação também crítica. 

 

Precisamos fazer um esforço individual e coletivo para apreender criticamente os múltiplos fenômenos sociais que se atualizam em suas formas de manifestação, porque a sociedade é um organismo vivo, se movimenta, se transforma. Ou seja, os nossos direitos conquistados com muita luta não são estáticos: basta o capital necessitar ampliar as bases de acumulação, que eles se vão, e as mulheres, sobretudo as negras, são as mais afetadas.

 

Eu entendo que, se não temos posição e argumento crítico, estamos fadadas/os a ter uma práxis profissional tecnicista, conservadora e racista. É o desafio contínuo para não sermos nem fatalistas e nem messiânicas/os. É ter coerência no exercício de nossa profissão com os princípios e valores éticos e políticos, pelos direitos humanos, pela liberdade, pela justiça social e por emancipação humana. 

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