Em alusão ao 8 de abril, Dia Internacional das/os Ciganas/os, o CRESS Entrevista, nesta edição, o profº Drº Flávio José, que tem se dedicado a pesquisar o modo de vida cigano no Rio Grande do Norte, com foco nas práticas pedagógicas.
Flávio é especialista em Formação de Professores e mestre e doutor em Educação pela UFRN. É também consultor educacional e atua em cursos de pós-graduação.
“Eles sempre foram detestados pela sua forma de viver, de desconhecer esse conjunto de normas da sociedade capitalista proprietária dos bens de produção”, afirma o professor. “Eles foram invisibilizados em razão do preconceito contra o homem diferente, que se movimenta na terra, que não é fixo”.
Confira a entrevista na íntegra
CR: Como surgiu o seu interesse em estudar os povos ciganos no Rio Grande do Norte? Qual o foco das suas pesquisas de mestrado e doutorado?
FJ: Meu interesse pela pesquisa se deu quando eu ainda era professor no curso de Magistério em Florânia (RN) e levei a minha turma para observar o acampamento de ciganos Calon que estavam morando na cidade, mas de forma muito passageira, porque eles moravam e se mudavam constantemente.
No final dos anos 1990, fiz Especialização em Caicó (RN) e construí a monografia “Sem lenço e sem documento: em que escola estudar”, um estudo realizado na Escola Municipal Domingas Francelina das Neves, de Florânia, onde havia um alto índice de evasão e repetência escolar.
Trabalhei com a observação participante junto a esse grupo e comecei a constatar a forma como eles educavam os filhos, ensinavam, transmitiam conhecimento de geração em geração e dei prosseguimento aos estudos.
Antes de ingressar no Mestrado, eu conheci a Pastoral dos Nômades do Brasil, movimento da Igreja Católica que acolhe ciganos, parquistas (povos de parques) e circenses. Ela tem sede na Bahia, e foi um grande achado para o meu interesse na pesquisa científica, em função do acúmulo de conhecimento que guardava, em seus documentos, viagens, trabalhos realizados junto a algumas paróquias em alguns estados do Brasil.
Ao ingressar no Mestrado em Educação, fui estudar as práticas culturais e pedagógicas dos professores com relação à aprendizagem das crianças ciganas da Praça Calon, em Florânia. Foi um trabalho muito rico, apresentei-o viajando pelo país inteiro. Nesse momento, já se consolidava uma política pública de educação de inclusão social, mas não existia ainda a discussão da educação de ciganos, e fomos pioneiros, praticamente. Neste sentido, construímos a dissertação “Das tendas às telhas: a educação escolar das crianças ciganas da praça Calon-Florânia/RN”, sob a orientação da Profª Drª Marlucia Paiva, que abraçou a pesquisa e me deu um leque de informações para que eu mergulhasse no universo da pesquisa científica com a história cultural. Minha pesquisa teve como campo empírico jornais, revistas, entrevistas, livros que fui garimpando.
No momento da minha pesquisa de Mestrado, comecei a entender que existiam vários outros grupos de ciganos, outras etnias além dos Calon aqui no Rio Grande no Norte. Existiam os ciganos Kalderash, Machuanos, Roraronês… ou seja, uma diversidade. Portanto o tema cigano é plural, em função da grande diversidade em que vive e circula esse povo no Brasil. Digo até que em todos os momentos históricos do país, os ciganos estiveram presentes. E infelizmente foram ocultados, marginalizados em função dos seus esteriótipos, criados pela própria sociedade emergente. Eles têm uma grande contribuição à história do Brasil!
No Doutorado, eu ampliei minha pesquisa e mergulhei nestes quatro grupos do Rio Grande do Norte: Calon, Machuano, Roraronês e Kalderash. A tese é a constituição de uma pedagogia para os itinerantes, os sujeitos que vivem em situação de constante movença, seja na casa, no bairro ou no país. Também tive a oportunidade de fazer o mapeamento das cidades onde circulam os ciganos. Para mim, enquanto estudioso, cigano não mora, cigano passa. Ele tem o nomadismo como lastro da sua própria natureza. Dificilmente encontramos um cigano que passa o tempo inteiro na sua casa.
Na minha tese, comecei também a fazer uma reconstrução da história da minha infância, quando eu ia ao sítio do meu avô, em Florânia, e encontrava os ciganos acampados perto do açude. Era um misto de medo, alegria e mistério. Tinham crianças, nós íamos conhecê-las, mas sempre ficava a pergunta: para onde elas vão? Será que vamos encontrá-las novamente? Isso me instigou a sempre ter a curiosidade sobre aqueles homens que trocavam coisas, aquelas mulheres que liam a sorte nas palmas das mãos das pessoas e vendiam figas, bijuterias e conversavam rapidamente, com os dentes cheios de ouro. Tudo aquilo me encantava muito.
Flávio José (de chapéu) na Assembleia Nacional da Pastoral dos Nômades, Cajazeiras PB, em 2018
CR: Como as comunidades ciganas estão organizadas, hoje, no estado?
FJ: No estado, existem diversas cidades onde as famílias se reúnem, passam, se apoiam uns nos outros. Tangará é uma cidade-polo, com o maior número de ciganos no Rio Grande do Norte, assim também como Apodi. Isto porque elas fazem entrepostos entre os estados do Rio Grande do Norte, Ceará e Paraíba. Há uma certa circulação própria de mercadorias, de negociação. Os ciganos são hábeis negociantes, comerciantes, vendem e trocam com facilidade.
Eles estão organizados em famílias, e a família do cigano é tradicional. O idoso, chamado Puron, é o elemento mais respeitado do acampamento, guardião da memória. As crianças ciganas recebem muito amor e respeito da família. Eu convivi e percebi que não existe violência nem abuso entre adultos e crianças ciganas. Você praticamente não encontra crianças ciganas em sinais de trânsito nas capitais, porque são muito protegidas, são guardadas para viver o futuro, para trazer o ouro para casa, que é o alimento e o dinheiro, que vai manter a coesão da família cigana. São educadas via memória oral, pela conversa, gestual.
Já contamos com um grande número de crianças ciganas nas escolas e levantamos uma questão: será que estes espaços têm contribuído para que tenham acesso aos bens sociais produzidos pelo conjunto dos homens? Ou será que essa escola redefine o papel de sujeito do cigano?
Ainda sobre a presença de ciganos aqui e no Nordeste, temos uma grande concentração de povos Calon na Bahia e em Sousa, na Paraíba.
CR: Na sua opinião, por que ainda existe tanto preconceito em relação aos povos ciganos? Por que ainda são tão invisibilizados?
FJ: As questões de preconceito são muito fortes. Desde a chegada dos ciganos à Europa, nós vamos fazer leituras e encontrar documentos que constam a expulsão deles em 1570, como degregedados, para o Brasil, para as colônias portuguesas. Eles sempre foram detestados pela sua forma de viver, de desconhecer esse conjunto de normas da sociedade capitalista proprietária dos bens de produção, da propriedade privada, dos usos e costumes que são completamente diferentes deles. Então eles foram abominados, expulsos de Portugal, embora ainda exista lá uma grande concentração de ciganos. Eles foram invisibilizados em razão do preconceito contra o homem diferente, o homem movente, que se movimenta na terra, que não é fixo.
Outro preconceito que é bastante percebido nas nossas pesquisas diz respeito ao discurso do corpo. O corpo do cigano fala, esse corpo maltratado, mal-trajado, diferente, de roupas coloridas, que muitas vezes não tem água para o banho. Não é porque não queira tomar banho, é que muitas vezes não tem. São pessoas que vivem na linha de pobreza. E eles vão construindo suas vidas como sujeitos que conseguem furar bloqueios nessa condição de um mundo capitalista, tão selvagem.
Flávio José (camisa preta) entre jovens ciganos Calon comemorando o dia Nacional do Cigano, em 2017
CR: Como o povo cigano está vivenciado a pandemia? Quais os principais desafios neste tempo de crise econômica e social?
FJ: No momento da pandemia, se estabelece uma tragédia entre os ciganos, porque eles estão passando por muitas dificuldades. É muita fome! Eles não têm mais como sair para vender seus objetos, para fazer suas trocar, e isto tem ocasionado um grande número de crianças famintas, sem escolas. A Pastoral dos Nômades do Brasil, representada em Natal pela Arquidiocese de Natal, tem feito campanhas juntamente ao Governo do Estado para suprir a necessidade alimentar destas pessoas, mas sabemos que não é possível chegar a todos os acampamentos, todas as cidades. Faço até um apelo: se alguém encontrar uma família de ciganos, que possa alimentá-la.
Em Caicó também temos a participação da Cáritas contribuindo com o povo cigano e circense de algumas cidades do Seridó. Nós temos tido essa preocupação. A nossa rede de pessoas que participam da Pastoral tem visualizado o que está acontecendo no Brasil e tentado tomar providências com relação inclusive às questões que necessitam de interferência judicial, como é o caso de ciganos que passam em algumas cidades, e o prefeito ou alguma autoridade expulsa esses sujeitos, temendo que eles tragam doenças.