O 13 de julho é o aniversário de 33 anos da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para celebrar a data e debater o tema, o nosso CRESS Entrevista Gláucia Russo sobre os principais desafios no cumprimento desta legislação.
Gláucia é assistente social, doutora em Ciências Sociais pela UFRN, professora adjunto do Departamento de Serviço Social da UERN e coordena, desde 2009, o Núcleo de Estudos e Ações Integradas na Área da Criança e do Adolescente na instituição.
“O grande desafio é concretizar o ECA em sua completude, pois isso, por si só, já mudaria sobremaneira as situações vivenciadas por nossas crianças e adolescentes, que teriam seus direitos humanos e, portanto, sua infância, vida e dignidade garantidas”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra:
CR: Neste ano, o ECA completa 33 anos de sua publicação. Quais são os principais desafios, hoje, para o seu cumprimento e efetivação?
GR:Conforme já sabemos, um ordenamento jurídico como o Estatuto da Criança e do Adolescente sozinho não é capaz de mudar a realidade, contudo, isso não diminui sua importância. Se fizermos um balanço desses 33 anos do ECA, iremos perceber que, apesar de ainda vivenciarmos diversas violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes, há também muitos avanços a comemorar. Os contextos sociais, políticos e econômicos nos quais nos encontramos reforçam ou diminuem a força do ECA em nossa sociedade, portanto, não é possível pensar seus principais desafios sem considerar a conjuntura social e política que vivenciamos.
Diante disso, são muitos os desafios para cumprimento e efetivação do ECA e certamente não serei capaz de citar todos, mas alguns que me vêm à memória por sua urgência: o primeiro deles diz respeito à sociedade ser capaz de reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e as violações que são cotidianamente vivenciadas por elas/es como algo a ser combatido e não naturalizado e banalizado; outro desafio é enfrentar o trabalho precoce como um processo que adultiza crianças e adolescentes e lhes impõe um lugar indevido na família e na sociedade, roubando sua infância e prejudicando seu direito à educação e a uma vida digna; a objetificação dos corpos por meio da violência sexual e da sua mercadorização pela mídia e redes sociais é outro desafio; a pobreza extrema a que muitas crianças e adolescentes são submetidas; a redução da maioridade penal; as situações de drogadição e a perda da infância para o tráfico são outros desafios que poderíamos citar e não podem ser enfrentados sem que os percebamos no contexto de uma sociedade capitalista, patriarcal, racista e adultocêntrica, cujo compromisso com a infância ainda é frágil e baseado em sua visão como seres subalternos, incompletos e perigosos.
De certa forma, o grande desafio é concretizar o ECA em sua completude, pois isso, por si só, já mudaria sobremaneira as situações vivenciadas por nossas crianças e adolescentes, que teriam seus direitos humanos e, portanto, sua infância, vida e dignidade garantidas.
CR: De que forma o Serviço Social tem contribuído para o fortalecimento do Estatuto?
GR: As/os assistentes sociais se inserem em diferentes políticas sociais e, no seu cotidiano profissional, se deparam com inúmeras situações de violação de direitos de crianças e adolescentes, portanto, a meu ver, profissionais têm no seu cotidiano profissional um dos principais espaços para fortalecimento do ECA.
Ao buscar garantir e defender os direitos humanos de crianças e adolescentes, se posicionar contra preconceitos e toda forma de opressão e violência existente contra esses sujeitos, ou seja, ao realizar sua prática em consonância com os princípios do Código de Ética Profissional de 1993, defendemos não apenas o projeto ético-político profissional, mas também o ECA. Além disso, muitas/os profissionais fazem parte dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, de Conselhos Tutelares, movimentos sociais, organizações não governamentais, projetos e programas dentro e fora de instituições, que pautam a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, assim como o ECA.
Para além das ações mais individuais, enquanto categoria, o Serviço Social tem se posicionado em defesa do ECA por meio de suas entidades representativas, como o Conjunto CFESS-CRESS e a ABEPSS, que têm pautado várias dessas lutas e participado dos movimentos sociais em defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
CR: Que possibilidades na atuação de assistentes sociais você destaca para o enfrentamento do neoconservadorismo e do desmonte dos direitos sociais, incluindo os direitos das crianças e adolescentes?
GR: A meu ver, a luta contra o neoconservadorismo e o desmonte dos direitos sociais passam pela luta política e pela construção de conhecimentos cientificamente embasados.
O neoconservadorismo vem se alimentando de narrativas que não se sustentam racionalmente, ou seja, em discursos baseados em mitos, como o mito da família tradicional como sustentáculo da sociedade ou do trabalho precoce como um antídoto contra a criminalidade de crianças e adolescentes. Embora não se trate de negar a importância do trabalho e da família em nossa sociedade, também não é possível pensá-los sem que nos remetamos às suas contradições, por exemplo: a família tradicional se sustenta em valores fortemente patriarcais e adultocêntricos, ou seja, nesta o homem adulto é visto como o elemento principal e mais importante e mulheres e crianças devem estar submetidas ao seu poder. É, portanto, um lugar atravessado por inúmeras violências, machismo, falsas moralidades, subalternidade de mulheres, crianças e adolescentes, dentre outros aspectos. A luta contra o neoconservadorismo passa, portanto, a meu ver, por compreendermos os processos sociais para além de sua aparência e construirmos discursos contra narrativas capazes de alcançar diversos setores e sujeitos da sociedade.
Portanto, o conhecimento e sua disseminação são armas importantes nessa luta, mas sozinhos não são capazes de enfrentar o neoconservadorismo e o consequente desmonte dos direitos sociais de crianças e adolescentes e de outros segmentos da sociedade.
Para além disso, é preciso fortalecer os sujeitos coletivos, sair às ruas, participar dos movimentos sociais, ocupar os espaços dos conselhos, mostrar nossas insatisfações, defender esses direitos em todas as esferas da sociedade, mostrar sua importância, lhes dar visibilidade e se posicionar diretamente contra as ofensivas que buscam negá-los ou suprimi-los. Não podemos esquecer que desde a Lei do Ventre Livre, de 1871, que tornava livre todas/os as/os filhas/os das pessoas escravizadas no Brasil nascidas a partir daquela data, até o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, todos os avanços e conquistas de direitos em nossa sociedade foram fruto da luta árdua e, por que não dizer, do suor e sangue de muitos sujeitos sociais, dentre elas/es crianças e adolescentes.
Para além disso, a luta política não deve ser apenas para manter os direitos já existentes em nível de ordenamentos jurídicos, mas para que estes sejam de fato efetivados, os indivíduos que os infringe responsabilizados, e deve ter como horizonte a ampliação desses direitos.
CR: Como você analisa a violação de direitos de crianças e adolescentes, hoje, na internet?
GR: A internet, por ser parte da sociedade capitalista, é contraditória, assim, ao mesmo tempo em que pode servir para a defesa de direitos de crianças e adolescentes, ao permitir debates; se constituir como um espaço de reivindicações, denúncias e informações; dar visibilidade a situações de violação que, de outra feita, não seriam conhecidas; dentre outras possibilidades que poderiam ser citadas; se configura também como espaço de violação de direitos.
Como a Internet ainda não está totalmente regulamentada, se constitui como um terreno para que as pessoas compartilhem informações e opinem sobre assuntos como se fossem especialistas, embora seus conhecimentos não sejam suficientes para se posicionar em outros veículos de comunicação e nem mesmo no cotidiano. Essas informações, assim como dados equivocados sobre o ECA ou envolvendo crianças e adolescentes e suas famílias, contribuem para abusos, exploração sexual, trabalho precoce, tráfico, erotização de crianças e adolescentes, um maior desconhecimento acerca do Estatuto, dentre outras situações.
As possibilidades de violação nesse campo são inúmeras e pode se dar: pelo repasse de informações inverídicas; veiculação de conteúdos pornográficos; existência de sites que exploram o trabalho, o corpo e a sexualidade desses pequenos seres; assim como, pela adultização precoce das/os chamadas/os influenciadoras/es mirins e outros meninos e meninas que utilizam a internet ou, em muitos casos, são utilizadas/os por ela.
A violação de direitos que ocorre hoje na internet é o retrato de uma sociedade que não aprendeu a proteger suas crianças e adolescentes. São, em geral, violações que já ocorrem há séculos, mas que se reinventam por meio das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, ganhando novos contornos e se complexificando, como é o caso do Cyberbullyng ou assédio virtual e do abuso sexual virtual, que têm suas versões também fora do mundo virtual, mas se reinventam nesse espaço.
Ou seja, a internet não é necessariamente boa ou má, mas os usos que fazemos dela podem levar à proteção ou violação de direitos de crianças e adolescentes. É necessário regulamentá-la e utilizar o seu potencial para proteger esses sujeitos em nossa sociedade, mas, para além disso, nossa sociedade precisa aprender a respeitar os direitos de crianças e adolescentes no chamado mundo real, para que essa prática possa se estender ao virtual, já que, embora pareçam ser dois mundos diferentes, estes compõem a mesma realidade e, portanto, a mesma sociedade.