A passagem por Natal (RN) foi rápida, menos de 24h, mas suficiente para animar e encher de esperança movimentos sociais e de esquerda que estão na luta contra os retrocessos do governo Temer e pelas Diretas Já. O líder nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, concedeu entrevista coletiva e participou de debate no Sindicato dos Bancários, na última quarta-feira (7), além de se reunir com lideranças de movimentos sociais.
Com 34 anos, Boulos é, hoje, uma das principais referências para a esquerda brasileira. Vindo de uma família de classe média de São Paulo, filho de pais médicos professores da USP, se envolveu com o movimento estudantil da União da Juventude Comunista aos 15, conheceu o MST e depois o MTST.
Nesta entrevista à jornalista do Cress/RN e a outros veículos de comunicação natalenses, o líder, que é filósofo e psicanalista, falou sobre os desafios da esquerda na difícil conjuntura atual, sobre especulação imobiliária e questões urbanas e os rebatimentos das decisões de Temer sobre as políticas sociais brasileiras. “Qualquer programa democrático no país deve ter como ponto zero revogar essas medidas absurdas”, disse. “Foi um programa imposto por um golpe no país, e o papel da esquerda é barrar esse programa, que faz o país andar 50 anos pra trás”.
Confira a entrevista
Como você analisa, hoje, a situação do crescimento urbano, da falta de moradia e ocupações?
A realidade da maioria das capitais é de muita segregação, em especial no Nordeste. Vindo do aeroporto pra cá, o pessoal me mostrava que da ponte pra cá a cidade é outra. Essa segregação está muito associada ao processo de especulação imobiliária, que expulsa as pessoas mais pobres para as periferias mais distantes.
No último período, esse processo tem se agravado muito. Se agravou em anos anteriores pelo aquecimento do mercado imobiliário e o empoderamento do setor da construção civil, que elevou a alta dos preços em todas as cidades brasileiras de modo incrível. A maioria das capitais ficou com valorização acima de 150% em seis anos. Terra passou a valer ouro. E isso expulsa, porque quem não pode, pela lógica do capital, está fora.
No último período, isso se agravou pelo desemprego. E aí falando mais especificamente da questão da moradia, temos 14 milhões de desempregados no país, e boa parte dos trabalhadores mais pobres não têm casa própria, moram de aluguel. Quando um pai de família ou uma mãe de família ficam desempregados, a consequência é não conseguir pagar aluguel.
Então, o número de pessoas sem teto, sendo despejadas, tem crescido muito nos últimos meses, em decorrência da crise econômica. Isso gera um barril de pólvora, faz com que haja uma pressão natural por ocupações. As ocupações não são vontade natural das pessoas, mas vêm da falta de oportunidades de ter uma moradia. E eu acredito que em Natal esse cenário também deve se aprofundar.
Quais as perspectivas para a esquerda nessa conjuntura atual?
Está difícil falar sobre conjuntura. Você pode ser desautorizado no minuto seguinte. Daqui a pouco você olha o celular e já mudou a conjuntura. Mas em relação às perspectivas da esquerda, acho que o grande desafio que está posto neste momento é barrar o programa de destruição nacional que está sendo levado adiante pelo governo de Michel Temer. Um programa que, vale dizer, não foi eleito nas urnas. O povo brasileiro não votou em Reforma da Previdência, em Reforma Trabalhista, não votou em congelar investimentos por 20 anos. Foi um programa imposto por um golpe no país, e o papel da esquerda é barrar esse programa. Esse programa faz o país andar 50 anos pra trás.
Agora, claro, essa é uma luta de resistência. E nós temos depositado as nossas energias, da Frente Povo sem Medo e da maioria dos movimentos sociais brasileiros, nisso. Teve uma Greve Geral, talvez a maior da nossa história, em 28 de abril; teve um ato com mais de 150 mil pessoas em Brasília no dia 24 de maio; tem uma nova Greve Geral planejada para o próximo dia 30 e um conjunto de mobilizações pelo Fora Temer, por Diretas Já e contra as reformas. Para além disso, é preciso pensar as perspectivas de longo prazo para a esquerda. Nós, movimentos sociais e ativistas, temos nos dedicado a começar a pensar esse caminho.
O que nós tivemos nos últimos 13 anos, nos governos do Partido dos Trabalhadores, foi uma política onde houve o chamado “ganha-ganha”. Houve políticas sociais, melhoria das condições de vida da população mais pobre, valorização do salário mínimo, mas isso se deu sem enfrentar nenhum privilégio histórico da “casa grande”. Não se fez reformas estruturais, reforma agrária, urbana, tributária, da dívida pública. Isso não foi pauta no país. Se manteve um sistema político que funciona à base de corrupção, não se mexeu no tema das comunicações. Em nome de uma lógica de governabilidade que inviabilizou processos mais ousados de alteração estrutural.
O que temos que pensar de esquerda daqui em diante tem que ser além desse modelo. As próprias condições econômicas e sociais do país tornam impossível uma repetição disso. Não dá pra pensar em avanços sociais sem enfrentar privilégios. Foi possível o “ganha-ganha” quando tinha crescimento de 4% ao ano e se podia fazer política social com manejo orçamentário sem tirar lá de cima. Com o país enfiado na maior recessão da sua história e uma polarização social e política incrível, não é possível pensar em agradar a todos. Tanto é que a política tocada por esse governo ilegítimo que está aí é de espoliação completa dos trabalhadores para garantir os interesses de 1%.
Temos que saber propor um programa de avanços estruturais, mais ousado, sem medo de tocar em feridas, sem medo de enfrentar os bancos, sem medo de propor um outro sistema político. A Nova República faliu aos olhos do Brasil inteiro. É preciso propor algo que democratize o sistema político de verdade, efetivamente pautar a distribuição de renda.
Quais os rebatimentos dos retrocessos do governo Temer nas políticas sociais a curto e longo prazo?
No caso da emenda constitucional do Teto dos Gastos, não foi uma medida qualquer. Ela foi aprovada debaixo de bomba em Brasília no ano passado e é uma verdadeira desconstituinte. Aquilo que a Constituição de 1988 tinha de mais progressivo e avançado, que é uma rede de proteção social, que é garantir o provimento de serviços públicos universais, como saúde e educação, é liquidado por essa emenda. Se isso for aplicado (digo ‘se for’ porque acho que vamos ter que derrubar isso na rua), vai se tornar insustentável.
Se eles conseguirem aplicar isso, não dê cinco anos pro fim do SUS, pra privatização da educação e da saúde no país, pro esgotamento de todos os programas sociais. É matematicamente impossível você assegurar programas sociais e serviços públicos universais com orçamento congelado. E, aliás, o projeto é esse. Assim como o projeto da Reforma da Previdência é acabar com a previdência pública, fortalecer os fundos de pensão e os bancos, o projeto dessa PEC é fazer o que Fernando Henrique Cardoso fez nas privatizações dos anos 1990. O que eles fizeram antes de privatizar a Vale e a Telebras? Sucatearam. Agora vão sucatear totalmente o serviço público de saúde, a ponto de poderem aproveitar isso pra um clamor social pela privatização.
Nós temos que barrar isso, denunciar, reverter essa medida que é um Crime de lesa-pátria. Quem aprovou isso cometeu um crime contra o país, contra o povo brasileiro. Qualquer programa democrático no país deve ter como ponto zero revogar essas medidas absurdas do governo Temer: A PEC, o projeto da Terceirização, o pré-sal e tudo aprovado até aqui. A PEC do Teto dos Gastos é talvez o maior atentado à democracia política no país desde a ditadura militar, porque um governo que não foi eleito decidiu a política econômica dos próximos quatro governos. Não vai ser possível fazer política social. Isso é um atentado brutal à soberania popular, já tão limitada na nossa capenga democracia.