Cress Entrevista Juliana Dantas sobre Depoimento Sem Dano

Você sabe o que é “depoimento sem dano”? Já foi convocado/a a fazê-lo? O Conjunto CFESS-Cress tem um posicionamento sobre o tema e tem buscado ampliar esse debate, seja no âmbito jurídico, seja junto à categoria, sobretudo entre assistentes sociais que atuam no Judiciário. O Cress Entrevista deste mês de abril trata justamente dessa polêmica questão, com a assistente social Juliana Dantas.

“A efetivação do depoimento especial acaba se contrapondo ao nosso Código de Ética, que reconhece a liberdade como valor ético central e as demandas políticas a ela inerentes, como autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, além de contradizer o nosso compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população”, defendeu a profissional. “Tal mecanismo inquisitório e policialesco não nos representa e/ou nos incumbe”, completou.

Juliana Dantas é conselheira da Seccional Mossoró do Cress/RN, tem 25 anos e iniciou há oito a militância na área da infância e juventude, durante a graduação na Universidade do Estado do RN (Uern). É mestra em Serviço Social e Direitos Sociais e servidora pública no município de Mossoró.

Confira a entrevista na íntegra:

CR: Qual a posição do Conjunto CFESS-Cress sobre a Lei 13.431 e o chamado “depoimento sem dano”?

JD: Essa Lei é oriunda da tramitação do PL 3792/2015, que tem autoria da deputada Maria do Rosário no âmbito do Congresso Nacional entre 2014 e 2017 e, na atual configuração, estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, por meio de alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Em contrapartida, embora denominado “Depoimento Especial”, é relevante considerar que essa normativa, apesar de ampliada e com outra nomenclatura, retoma o debate do Depoimento Sem Dano (DSD), que o CFESS já tinha e tem posicionamento contrário.

Nesse sentido, fundamentalmente, é algo que se manifesta na inquirição de crianças e adolescentes, no interior de atos acusatórios ou processos criminológicos, objetivando que elas revelem fatos, contextos e eventos perpetrados em situações de violência contra si, sendo, em muitos momentos, perante um tribunal composto por diversas pessoas envolvidas no processo em questão. Tal abordagem metodológica, no que concerne às vivências específicas desses sujeitos, busca acoplar as informações extraídas das vítimas e estabelecê-las enquanto construção de provas judiciais.

CR: Quais as contradições que norteiam a operacionalização dessa Lei no âmbito do Serviço Social?

JD: É importante dizer, inicialmente, que essa Lei é complexa no âmbito de nossa atuação, autonomia, identidade, sigilo profissional e, de maneira mais ampla, impacta diretamente na materialização de nosso projeto ético-político profissional. Com fundamento nessa apreensão,  bem como sincronizado com diálogos coletivos e críticos, o Conjunto CFESS/Cress normatizou a Resolução CFESS 554/2009, dispondo sobre o não reconhecimento da inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo judicial, na época sob a Metodologia do DSD, como sendo atribuição ou competência do/a profissional assistente social. Em contrapartida, a Justiça Federal suspendeu os efeitos desta Resolução desde 2014, e, apesar de todos os recursos interpostos pela assessoria jurídica do CFESS em sentido contrário, foram negadas as nossas prerrogativas profissionais e exaltado o absolutismo judiciário.

A escuta especializada, segundo a lei, refere-se ao procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitando o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade. Já o depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. Cumpre destacar que, embora não esteja expressamente inscrito na lei que o/a assistente social e o/a psicólogo (categoria profissional que também se posiciona contrária a essa metodologia) devem ser operacionalizadores dessa modalidade, o conteúdo da normativa condiciona para esse fim.

Os/as assistentes sociais, ao serem alocados nas audiências a partir dessa abordagem, tornam-se porta-vozes do juiz, limitados/as no que se refere aos direcionamentos a serem dados e quantitativo de questões a serem transmitidas à criança/adolescente. Ademais, não possuem liberdade sobre os meios, instrumentos e procedimentos a serem efetivados, visto que a inquirição é um mecanismo jurídico e não pode ser confundida com o estudo ou acompanhamento social. Da mesma forma que um médico possui a autonomia de indicar quais exames são imperativos para realizar um dado diagnóstico, incumbem aos demais profissionais a escolha de técnicas e metodologias, mediante sua instrumentalidade, que sejam capazes de tornar possível o seu fazer profissional.

Se lançarmos luz sobre essa realidade, a efetivação do depoimento especial acaba se contrapondo ao nosso Código de Ética, que reconhece a liberdade como valor ético central e as demandas políticas a ela inerentes, como autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, bem como se contradiz ao nosso compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população. De fato, esse mecanismo inquisitório e policialesco não nos representa e/ou nos incumbe.

CR: No caso de crianças e adolescentes vítimas de violência, quais os impactos dessa Lei?

JD: Quando se fala em violência contra crianças e adolescentes, em suas diversas faces, é preciso entendê-la como um fenômeno bastante complexo e com dimensões históricas, sociais e culturais.  No momento em que se prima pela tramitação penal e responsabilização do suposto agressor, o campo sócio-jurídico contextualiza a criança e/ou adolescente em um espaço em que ela, muitas vezes, é o meio de prova da violência a qual foi submetida.

No que concerne à escuta de crianças e adolescentes, os/as assistentes sociais devem atuar na perspectiva da integralidade, liberdade e pensando no seu melhor interesse em todo o processo. Partindo de um posicionamento ético e legítimo, se contrapor a essa lei se embasa no entendimento de que ela mais viola e revitimiza crianças e adolescentes do que garante seus direitos, pois quando a vítima verbaliza e detalha a violência a qual foi submetida, esse ato, de maneira dialética, a posiciona a reviver a situação, causando danos e constrangimentos e violentando-a novamente. Ademais, quando a lei coloca que o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo, é evidente quais intenções estão em jogo. Compreendo, dessa forma, que a lei se detém estritamente à apuração de culpados e secundariza mecanismos para a promoção, proteção e garantia de direitos no âmbito de prevenção de violações e/ou a posteriori dessa inquirição como acompanhamento desses sujeitos.

CR: Quais são as possibilidades de intervenção profissional do/a assistente social em casos judiciais envolvendo crianças e adolescentes?

JD: Por tudo que foi dito, e mesmo mediante a suspensão de resolução sobre o tema, é necessário defendermos a nossa atuação junto à criança ou adolescente com base na sua proteção integral, que se distingue, portanto, daquela que delineia o Poder Judiciário, cujo intuito é a busca de provas, da verdade material/indiscutível dos fatos e com interesse na punição do/a ofensor/a.

Mesmo reconhecendo as limitações, e por muitas vezes truculências do sistema sócio-juridício, e compreendendo que essa abordagem não possui nenhuma relação com a formação ou conhecimento profissional do/a assistente social, obtido em cursos de Serviço Social, o Conjunto CFESS/Cress entende que a Lei 13.431/2017 não obriga a participação de assistentes sociais nas equipes responsáveis pela inquirição especial de crianças e adolescentes por meio do “depoimento especial” e recomenda a permanecermos fazendo uso de nossa autonomia profissional (art. 2º, Alínea h do Código de Ética Profissional) para continuar resistindo a assumir o depoimento especial como uma de nossas atribuições ou competências. Nossos campos de atuação e, talvez mais profundamente no sócio-jurídico, são espaços com projetos sociais em disputa. É necessário resistirmos!

CR: Na sua opinião, a discussão tem sido ampliada na categoria? Os/as profissionais têm se apropriado do debate?

JD: Como podemos perceber, o tema em questão é algo bem polêmico e permeado por antagonismos e contradições. O conjunto CFESS/CRESS possui um posicionamento hegemônico (mas não homogêneo) de contraposição a essa metodologia, o que expressa os debates mais amplos da categoria. Em contrapartida, também é sabido que o âmbito sócio-jurídico é uma arena tensa, disciplinadora, conflitiva, perpassada por relações verticalizadas e, muitas vezes, impositivas e de controle.

Ao mesmo tempo, embora nossa categoria profissional possua ampla participação em pesquisas e estudos sobre a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e este seja um fenômeno presente no espaço sócio ocupacional dos/as assistentes sociais, compreendo que, nas diversas áreas de atuação coexiste uma lacuna sobre os debates, diálogos, sistematização dos conhecimentos e práticas sobre o processo.

Acredito que o tema ainda precisa de uma maior exposição e diálogos mais profundos entre os/as assistentes sociais, fato que pode propiciar o fortalecimento coletivo dos/as profissionais contra essa metodologia no âmbito de defesa do nosso projeto ético-político, que sinaliza a direção da atuação pautada em princípios como democracia, liberdade e justiça social.

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