O Cress Entrevista do mês de abril antecipa o Dia de Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio, para discutir um tema que faz parte do cotidiano profissional de assistentes sociais e representa uma das bandeiras de luta e atuação do Conjunto CFESS-Cress.
A entrevistada desta edição é a assistente social Samya Pinheiro, que atua no Centro-Dia de Referência para Pessoa com Deficiência, é mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal do RN (UFRN) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho, Ética e Direitos (GEPTED/UFRN). Atualmente, é também integrante da Comissão de Comunicação do Cress/RN.
“A internação compulsória representa um retrocesso para a Política de Saúde Mental, pois trata-se muito mais de uma política higienista do que uma política preocupada com a prevenção e recuperação dos dependentes químicos”, ressaltou Samya. “Além de deslegitimar as inúmeras conquistas já alcançadas, deteriora a autonomia e liberdade dos indivíduos”, completou.
Confira a entrevista na íntegra
CR: Como tem sido a participação do Serviço Social no movimento da luta antimanicomial?
SP: O Serviço Social, em âmbito nacional, vem contribuindo ativamente com a luta antimanicomial. Ao mesmo tempo, há também uma efetiva participação dos/as assistentes sociais de base em defesa dos direitos humanos, no âmbito dos conselhos de direitos e movimentos sociais, bem como na articulação intersetorial por serviços na perspectiva da garantia de direitos. Ressalta-se que a luta cotidiana se processa não somente no que concerne ao exercício profissional, mas também na atuação das nossas entidades representativas, como o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), que compõe a coordenação da Frente Nacional sobre drogas e direitos humanos.
Nesse sentido, e especificamente sobre a relevância para a luta antimanicomial, torna-se fundamental que os/as assistentes sociais, em consonância com o projeto ético-político da profissão, venham a fortalecer essa luta a partir da articulação coletiva e nos espaços sócio-ocupacionais do fazer profissional, tendo em vista que a luta pela Reforma Psiquiátrica é um processo que se inscreve numa dimensão ética, contra todo tipo de violação de direitos e na constante defesa intransigente dos direitos humanos, norteando seus processos de trabalho a partir dos princípios e diretrizes já consolidados.
CR: Quais os maiores desafios enfrentados atualmente pelos/as profissionais de saúde mental?
SP: O processo da Reforma Psiquiátrica se caracteriza por ações do Estado e principalmente dos movimentos sociais para efetivar a transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico para um modelo de atenção comunitário. Contudo, esta política está posta em cheque, tendo em vista as novas configurações da realidade brasileira perante a saúde mental no país. Embora desde 2001 a Reforma Psiquiátrica tenha sido regulamentada com a Lei nº 10.216/2001, o que se percebe é que, de fato, ainda há muito a ser implementado. O caos advindo do sucateamento do Sistema a Único de Saúde (SUS) é nítido nas degradantes condições de trabalho dos profissionais da área, bem como no acolhimento aos usuários e familiares nos serviços.
Outro exemplo nítido das ameaças à efetivação da Reforma Psiquiátrica se reflete nas medidas repressoras do Estado acerca do significativo aumento das internações compulsórias de dependentes químicos. Isso se dá com destinação de verbas públicas para entidades privadas e/ou “sem fins lucrativos” em clínicas particulares e nas “comunidades terapêuticas”, prevista no Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (nº 7.637/2011). Este é um fato explícito da política neoliberal, na qual o Estado cada vez mais se minimiza perante a Questão Social.
Diante desse contexto de retrocessos, são inúmeros os desafios que se apresentam para os profissionais que atuam cotidianamente na política de saúde mental, dentre eles uma atenção especial aos serviços opostos à internação dos dependentes químicos em sofrimento psíquico – que são de natureza pública e compõem a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) sob a perspectiva da Redução de Danos -, para que não venham igualmente a se privatizar, institucionalizar e/ou se tornar estabelecimentos que privilegiem a internação como uma alternativa ideal ao tratamento da dependência química.
Tendo em vista a ofensiva neoliberal e a forma como essas forças têm se apropriado da Reforma Psiquiátrica brasileira ao materializá-la enquanto política social, outro desafio se impõe, que é o do fortalecimento da luta antimanicomial para além dos serviços de saúde mental, de forma intersetorial, tendo em vista que o sofrimento psíquico é uma realidade que perpassa inúmeros espaços do fazer profissional. Além disso, a história tem nos mostrado bem que a alternativa para a classe trabalhadora é a luta coletiva.
CR: O que ainda é preciso dizer à sociedade sobre o convívio com o sofrimento psíquico e a luta contra a internação compulsória?
SP: O processo de Reforma Psiquiátrica foi protagonizado pela luta dos trabalhadores da área da Saúde Mental e das famílias, que, após anos de debate e defesa de uma direção que privilegiasse a desinstitucionalização, ainda possuem uma longa jornada de luta política em defesa do SUS e da própria reforma.
O uso da autoridade, um dos eixos do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas (nº 7.637/2011), com intervenções de “segurança pública” nas áreas de maior vulnerabilidade para consumo dirigido à população em situação de rua, negra e pobre da periferia, é realizado através do forte pensamento higienista que terrifica as substâncias psicoativas, sobretudo o crack, em nome da “segurança de todos”, fazendo desaparecer do campo de visão da população aqueles que são tidos como uma ameaça à sociedade, dentre estes os dependentes químicos, internando-os compulsoriamente em casas abrigos, comunidades terapêuticas, hospitais psiquiátricos e em clínicas particulares, para que sejam “tratados” até que parem de usar psicoativos. Essa ideia é fortemente presente na sociedade brasileira, sobretudo na mídia, provocando horror entre a população, que, assustada, é, na maioria das vezes, empurrada a apoiar tais ações.
É preciso dizer à sociedade que o discurso dominante, diariamente legitimado na mídia, dá ênfase aos aspectos mais degradantes e trágicos da trajetória de alguns dependentes químicos, o que induz a análises e conclusões fatalistas, como associar os dependentes químicos do crack a pessoas que vivem em conflito com a lei, estigmatizando e caracterizando a dependência química como um “desvio de conduta”. De fato, o uso abusivo de psicoativos pode levar ao sofrimento psíquico grave, mas não faz sentido utilizar este argumento para defender o tratamento compulsório desenfreado como vem ocorrendo no Brasil.
A internação compulsória representa um retrocesso para a Política de Saúde Mental, pois trata-se muito mais de uma política higienista do que uma política preocupada com a prevenção e recuperação dos dependentes químicos. Além de deslegitimar as inúmeras conquistas já alcançadas, deteriora a autonomia e liberdade dos indivíduos.
CR: Qual o papel da família na luta antimanicomial?
SP: Elas são de fundamental relevância nesse processo de luta, porque sofrem a perversidade da culpabilização, dos discursos de defesa da família enquanto valor ideal e da volta dos valores conservadores funcionais da ordem burguesa. É válido ressaltar que a Luta Antimanicomial não foi protagonizada apenas pelo Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), mas teve uma grande participação das famílias e usuários nas denúncias e mobilização pela humanização dos hospitais psiquiátricos.
No estudo sobre “Saúde Mental e Serviço Social: O desafio da subjetividade e interdisciplinaridade”, de Eduardo Vasconcelos, é nítido o quanto a família foi um espaço de militância e luta pela Reforma Psiquiátrica, o que nos reafirma que o princípio da desinstitucionalização da Luta Antimanicomial não se refere apenas à pessoa institucionalizada, mas também às relações sociais de uma maneira geral, nas quais a família tem papel muito importante.
CR: Como seria uma rede efetiva de atendimento em saúde mental? Como é essa situação no RN?
SP: Não nos restam dúvidas de que, para a garantia de uma Rede de Atenção Psicossocial efetiva, seria de fundamental relevância a primazia do Estado; estruturação das unidades de serviços comunitários e abertos (como os leitos em hospitais gerais com equipe interdisciplinar qualificada para atendimento das demandas da saúde mental); ampliação e/ou valorização dos centros e núcleos de atenção psicossocial; residências terapêuticas; fortalecimento e criação dos programas de apoio à desinstitucionalização e ambulatórios e oficinas terapêuticas, além do fortalecimento das articulações intersetoriais necessárias à garantia dos direitos dos usuários que acessam e necessitam dos cuidados para a promoção da saúde de forma ampla e da saúde mental nas suas especificidades.
Enquanto assistente social do Centro-Dia – Serviço Especializado da Assistência Social para Pessoa com Deficiência -, lugar onde a maioria hegemônica dos usuários necessitam dos serviços de saúde mental, vejo a necessidade de profundas mudanças na Rede de Atenção Psicossocial no estado. A precariedade dos serviços de saúde tem afetado inúmeras instâncias sociais, desde a dificuldade de articulação em rede para um simples acompanhamento especializado até a ausência de recursos humanos e materiais nessas instâncias, que refletem também na precarização do trabalho destes profissionais e dos serviços oferecidos.