“Estamos vivendo a violência como ferramenta”, diz pesquisadora Jules Falquet

Ouvir Jules Falquet é inquietar-se. É entender um pouco mais da atual conjuntura política mundial a partir da América Latina e compreender de que forma a violência contra as mulheres é funcional ao neoliberalismo, sobretudo em tempos de radicalização do capital em suas mais perversas faces.

A pesquisadora francesa, feminista e lésbica de 51 anos foi a convidada do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) para a aula inaugural deste semestre, na última quinta-feira (22), e o Conselho Regional de Serviço Social do RN (CRESS/RN), a convite do Programa, esteve lá para cobrir o evento.

Jules estuda, escreve e debate, dentre outros temas, sobre o que chama de “reorganização da violência no contexto neoliberal” e as “guerras de baixa intensidade”. “A violência, neste contexto, é uma ferramenta, é planejada e funcional, com impunidade garantida”, diz. “Por isso vemos, além do aumento, a reorganização da violência racista, classista e contra as mulheres”.

Sou meu próprio lar

Ao nascer, segundo a pesquisadora, foi diagnosticada fêmea. “Logo acharam também que eu era branca”, brinca. Privilegiada, se define, nasceu em uma família de classe média, estudou em escolas tradicionais e teve um bom emprego na universidade. “Hoje, estou tentando lutar contra o racismo, o capitalisto e as relações de sexo dominantes”, ressalta.

Jules dedicou-se a pesquisar aspectos da América Latina, onde viveu por um período da década de 1990, e acredita que o continente é central para entendermos as relações mundiais da atualidade. Na queda do Muro de Berlim, estava no sul do México, em Chiapas, estado que faz fronteira com a Guatemala. Pesquisava a escolarização das mulheres indígenas na rede pública e questionava até que ponto o ensino não era etnocida.

Depois, morou em El Salvador, para o Doutorado, estudando a participação das mulheres na luta revolucionária. Presenciou o cessar-fogo e a “democratização”, o florescimento dos movimentos sociais e a reaparição do movimento feminista. “Foi uma experiência política e intelectual muito marcante”.

Viu, em 1994, o surgimento do Movimento Zapatista, em Chiapas. Acompanhou de perto o primeiro movimento indígena e camponês a chamar a atenção para a globalização neoliberal como maior problema da humanidade. E, com isso, viveu a luta das mulheres revolucionárias. Jules acompanhou o fortalecimento do movimento feminista e lésbico da América Latina.

“Os anos 1990 ainda eram sorridentes na crítica neoliberal”, recorda. “Neste período, vimos a ideia da igualdade de gênero ser utilizada para legitimar a globalização”, completa. Hoje, para a francesa, vivemos um segundo período, o da violência de forma mais evidente, iniciado em 2001, com o ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, e aprofundado com a crise econômica de 2008.

“O sistema se impõe de forma cada vez mais violenta. As desigualdades de sexo e raça estão aumentando, bem como a multiplicação das diversas formas de violência e diferentes formas de guerra”, reflete. “O Brasil, o México e a América Central são exemplos impactantes disto”, completa.

Alguma coisa está fora da ordem

“Sou francesa, e a França tem longa história colonial e produz e exporta armas de diferentes tipos e doutrinas militares”, diz. A afirmação respalda sua tese sobre o novo momento em que o mundo está situado, das chamadas guerras de baixa intensidade. “Este conceito, que descobri em El Salvador, é importante para entendermos o que aconteceu e o que acontece hoje”.

Segundo Jules, a guerra baseia-se no uso massivo da tortura política como forma de infundir pânico entre as pessoas, desmoralizar e criar passividade. Também é bastante publicizada, mas não é oficial. Ou seja, não tem regras, começo nem fim. “Há um exército mais ou menos formal contra a população civil, sobretudo as mulheres. É uma guerra cruel, apesar do nome”, denuncia.

A pesquisadora cita a “privatização da violência”, tanto no que refere à sua ligação com empresas de mercenários que apoiam exércitos, quanto na segurança particular, com a interpenetração entre polícia, exército, narco e crimes. “Também há a esfera privada nos homens que individualmente espancam e matam mulheres”, diz. “Há ainda um duplo barateamento: quando deixo que um homem mate a companheira, não tenho que pagar nada. Quando deixo que a polícia mate a sindicalista, nego a violência”.

Sobre a aparente calmaria dos dias atuais, Jules encerrou a palestra comentando alguns capítulos do seu livro Pax Neoliberalia. É lá onde trata com mais detalhes do conceito de guerra de baixa intensidade. E é lá onde, segundo ela, tenta orientar as/os leitoras/es sobre como lidar com a realidade posta. No seu “portunhol” totalmente compreensível, adquirido com os anos dedicados à América Latina, a francesa nos encoraja à desnaturalização do que oprime.

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