Sou assistente social trans… Somos resistência!

Arte: Rafael Werkema/CFESS sobre foto de Cláudio Lopes (acervo)

“O Dia da Visibilidade Trans para mim é o marco do reconhecimento da minha cidadania, enquanto cidadã de direitos. É o marco do empoderamento de direitos, numa sociedade cis-heteronormativa e patriarcal”.

Esse é o sentimento da assistente social Cássia Pereira de Azevedo sobre o dia 29 de janeiro, data em que se comemora a Visibilidade Trans no Brasil.

Cássia se apresenta como mulher trans, negra e periférica. E em uma sociedade ainda marcada por sexismo, racismo, transfobia e outras formas de preconceito, Cássia, sem dúvida, é sinônimo de resistência.

Trabalhadora do Centro de Cidadania (CCLGBTI Édson Néris), na zona sul de São Paulo (SP), ela atende diariamente a população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (daí a sigla LGBTI) que chega à unidade, na maioria das vezes, em situação de extrema vulnerabilidade social, sem acesso a direitos básicos, como educação, saúde e trabalho, e vítima de discriminação e de violência cotidianas.

Segundo Cássia, as principais demandas da população trans e travesti que permeiam seu cotidiano profissional estão relacionadas às “violências físicas e psicológicas que essas pessoas sofrem no seu cotidiano, seja numa ida ao mercado, shopping, dentre outras repartições públicas, seja numa simples consulta médica”.

A dificuldade de acesso ao mercado de trabalho é também outra questão recorrente em seus atendimentos, situação que ela vivenciou durante anos até se tornar assistente social e trabalhar no Centro de Referência.

“O meu desafio maior foi me inserir no mercado de trabalho, uma vez que fujo da ‘ordem natural’ dos padrões de macho ou fêmea impostos pela sociedade. E as desculpas foram diversas, como por exemplo: ‘você não se encaixa no perfil da empresa’, ou, ‘retornaremos para você’, costumam dizer”. Situações essas que se repetem com frequência, segundo os relatos que Cássia escuta em seus atendimentos.

Na opinião do assistente social Cláudio Bartolomeu Lopes, que é colega de trabalho da Cássia no CCLGBTI, esta dificuldade de acesso ao mercado de trabalho das pessoas trans e travestis está relacionada à “hipocrisia que ainda reina em nossa sociedade, sendo esta marcadamente machista e racista e atribuindo aos homens trans, mulheres trans e travestis um papel que beira a marginalidade”.

Segundo ele, o baixo nível de escolaridade também é um outro fator que impossibilita o acesso ao trabalho formal. “Muitas vezes, ouvimos dizer que as pessoas trans não estudam. O fato real é que estas pessoas, por conta da transfobia, ainda presente no ambiente escolar, vão aos poucos sendo expulsas das escolas, da mesma forma que acabaram sendo expulsas de seus ambientes familiares”, completa.

Estas situações levam as pessoas trans e travestis a vivenciarem cenas cotidianas de violência, “que vão desde o desrespeito, à transfobia, diferentes formas de violência verbal, física, moral e, por vezes, o extermínio por meio de assassinatos cruéis”.

Cássia se lembra de uma das primeiras violências que sofreu, ainda na infância, vinda da sua própria família: ser calada pela mãe por querer usar uma calcinha. “É importante que as pessoas entendam que a gente não escolhe ser trans. A gente nasce assim”, explica, de forma didática, o que é identidade de gênero.

Nenhuma vida a menos!

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulga anualmente um relatório com o número de assassinatos e violências sofridas por travestis e transexuais no Brasil. Os dossiês são lançados todo 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, e abordam também tentativas de assassinatos, violações de direitos humanos e outras mortes não solucionadas.

“Convidamos as pessoas a conhecerem os nossos estudos. Temos uma média de 120 a 130 mortes ao ano, nos últimos seis anos, vítimas da transfobia. E ainda assim temos a certeza que esses números não refletem na totalidade a realidade que nós vivenciamos”, explica a presidenta da Antra, Keila Simpson.

Segundo a Associação, o Brasil segue na liderança no ranking dos assassinatos de pessoas Trans no mundo, conforme relatório da Trangender Europe (TGEU), instituição que monitora dos casos de assassinatos de pessoas Trans pelo mundo, a partir de dados coletados pela mídia. Todavia, o número de ocorrências desse tipo pode ser ainda maior, devido ao elevado índice de subnotificação.

Esse histórico, somado ao visível aumento recente da incitação ao ódio contra populações LGBTI, negros/as e indígenas, banalizam ainda mais a violência contra homens e mulheres trans e as travestis.

Pelo menos essa é a impressão da Cássia, com base nos atendimentos que faz no CCLGBTI de São Paulo. “Nos dias de hoje, com esse governo, acho que dobrou o número de violência contra o público LGBTI, em especial contra as pessoas trans e travestis, ainda mais porque nossa identidade de gênero está visível”, opina.

Cássia (à direita) durante atendimento à usuária no CCLGBTI (foto: Cláudio Lopes/acervo pessoal) 

Atendimento qualificado para a população trans e travesti

Os princípios do Código de Ética do/a Assistente Social orientam a categoria para um atendimento sem qualquer tipo de discriminação e para um trabalho que deve caminhar na direção de eliminação de todas as formas de preconceito. Uma atuação profissional que respeite a diversidade.

Mas pessoas travestis e trans, ao procurar os serviços públicos para o atendimento de suas requisições, ainda costumam se deparar com trabalhadores/as totalmente despreparados/as para lidar com demandas específicas desta população.

“Uma delas é a não utilização do nome social, sobre a qual já há regulamentações nos três níveis de governo, colocando as pessoas trans em uma situação de constrangimento extremo”, relata Cláudio Lopes, do Centro de Referência LGBTI de São Paulo.

Segundo ele, no caso da população trans em situação de rua, ou adolescentes que precisam de acolhimento, na maioria das vezes, “os serviços de acolhimento tomam em conta o sexo biológico e não a identidade de gênero da pessoa, ocorrendo situação de travestis ou mulheres trans serem acolhidas em espaços destinados para ‘homens’, colocando-as em situações de risco, vexames e de violências física, moral, patrimonial e sexual”.

Cláudio ainda ressalta que ao\à assistente social “está posto o grande desafio de entender estas realidades, reconhecer que as pessoas trans são sujeitos/as de direitos como qualquer outro/a cidadão/ã e fazer o enfrentamento destas demandas, tendo em consideração os princípios do Código de Ética Profissional, principalmente ao que nos leva a tomar posicionamento na defesa intransigente dos direitos humanos”.

Na avaliação de Cássia Pereira, o Serviço Social contribui para o enfrentamento à violência, colaborando na elaboração de políticas públicas que se desdobram em “programas sociais e ferramentas como a educação, implantação de políticas que proponham a garantia de direitos e promovam a inserção das pessoas trans e travestis no mercado de trabalho formal”, exemplifica.

Material com orientações para atendimento a assistentes sociais trans e travestis foi lançado em 2019 (foto: Rafael Werkema/CFESS)

Pauta trans/travesti ganha espaço no Serviço Social

“Podemos dizer que o Serviço Social avançou nesses últimos anos. Além do Código de Ética, dos Planos de Ação e das Bandeiras de Luta do Conjunto CFESS-CRESS. Temos campanhas lançadas em alusão à livre expressão da identidade de gênero (Nem rótulos, nem preconceito. Quero respeito); fomos a primeira categoria profissional a assegurar a utilização do nome social no documento de identidade profissional (DIP); realizamos, em 2015, o Seminário Nacional Serviço Social e Diversidade Trans, enfim, um amplo processo de construção que culminou na Resolução do Cfess nº 845/2018, que regulamenta a atuação de assistentes sociais no chamado processo transexualizador”.

Essa é a análise é da assistente social Liliane Caetano, que ocupou de 2015 a 2019 o assento do CFESS no Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT). O Conselho, onde o CFESS esteve presente desde 2013, foi extinto por Bolsonaro em junho de 2019.

Segundo Liliane, o histórico do Conjunto CFESS-CRESS e a própria ampliação das discussões sobre a temática na sociedade de maneira geral corroboram para que assistentes sociais tenham mais informações a respeito sobre a pauta trans/travesti.

“É notório que, no decorrer do tempo, tem aumentado a quantidade de assistentes sociais que trabalham em áreas como a saúde, a assistência social, direitos humanos, em serviços direcionados à população LGBTI, ou mesmo específicos para pessoas trans e travestis. Assim, temos caminhado, ainda que gradualmente, no sentido de profissionais que não trabalham em áreas específicas de atendimento a essa população, passarem a incorporar em seu cotidiano de trabalho a perspectiva dos direitos à identidade de gênero. Avançar nessa direção é um dos nossos maiores desafios enquanto categoria”, ressalta.

Para ela, o tema sobre os direitos das pessoas trans e travestis deve estar na ordem do dia, pois, no limite, “diz respeito ao direito à vida”.

“O conservadorismo impregnado na sociedade brasileira se expressa também no Serviço Social. Parte do discurso contrário à garantia desses direitos se embasa no fundamentalismo religioso, de tal modo que precisamos refletir sobre a laicidade da profissão. Os posicionamentos do Conjunto CFESS-CRESS já são uma maneira de enfrentamento à perspectiva conservadora. Mas, para além disso, acredito ser preciso manter a nossa convicção de que combatemos ideologias reacionárias e não pessoas. Digo isso devido à necessidade de diálogo de fato com quem pensa diferente, não em uma perspectiva ‘catequizadora’, sobretudo em épocas de polarizações de ideias”, sugere Liliane.

CFESS participa da comissão que forneceu subsídios à revisão de resolução do CFM

Na primeira quinzena de janeiro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) organizou uma coletiva de imprensa para abordar a nova Resolução CFM 2265/2019, “Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero”.

O CFESS compôs, a convite do CFM, a comissão para o estudo da transexualidade. Foram quase dois anos de trabalho da comissão, elaborando subsídios para que a Resolução do CFM de 2010 fosse alterada, contemplando alguns aspectos que foram, historicamente, objeto de controvérsia junto à equipe de profissionais dos serviços e ao próprio movimento organizado de transsexuais.

Na análise de Liliane Caetano, que representou o CFESS e acompanhou os debates da comissão, a nova resolução representa avanços, sendo que alguns pontos merecem destaque.

“A previsão de construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS), metodologia que deve considerar a participação ativa de cada pessoa em seu processo de cuidado em saúde; a regulamentação do acesso ao bloqueio hormonal, em caráter experimental, a partir da puberdade, que é a inibição do desenvolvimento de caracteres sexuais secundários e consiste em um procedimento reversível; a possibilidade de adolescentes a partir de 16 anos poderem ter acesso a hormonização de acordo com o gênero de sua identificação; os procedimentos cirúrgicos passam a ser autorizados a partir dos 18 anos de idade, devendo ser realizado um acompanhamento mínimo de 1 ano”, relatou.

Mas, segundo ela, alguns pontos ainda são desafiadores, como a necessidade de diagnóstico psiquiátrico para as intervenções corporais. “Países como Argentina e Uruguai, que dispõem de leis específicas de identidade de gênero, avançaram na perspectiva de direito ao corpo. Por isso, é importante que o CFESS continue articulado à luta dos movimentos sociais que serão protagonistas para que esses avanços, em outras instâncias, sejam possíveis em nosso país”, completa Liliane.

E é buscando participar dos espaços políticos, elaborando normativas e incentivando práticas profissionais em respeito à diversidade que o Conjunto CFESS-CRESS segue firme na luta pelos direitos das pessoas trans/travestis.

É no cotidiano profissional que assistentes sociais, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero, têm a tarefa e o desafio de trabalhar para viabilizar direitos para a população.

Como destaca a assistente social trans Cássia Pereira: “meu principal desafio como assistente social trans é a responsabilidade pela representatividade de ser uma mulher trans, o que exige de mim a missão de dar respostas às diferentes demandas das trans e travestis, devido às suas singularidades/particularidades que vão para além da garantia aos acessos dos seus direitos”.

(Arte: Rafael Werkema/CFESS – Foto: Bruno Costa e Silva)

 

  1. Conheça o folder Orientações para o atendimento de pessoas trans e travestis no Conjunto CFESS-CRESS
  2. Baixe a versão para impressão
  3. Leia o caderno Transfobia, da série Assistentes Sociais no Combate ao Preconceito
  4. Relembre como foi o Seminário de Serviço Social e Diversidade Trans
  5. Baixe o cartaz Nem rótulos, nem preconceito. Quero respeito

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